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domingo, 30 de março de 2014

UM EMPRESÁRIO SEM ESCRÚPULOS E O HORROR DA DITADURA BRASILEIRA



As prateleiras das livrarias estão sendo fartamente abastecidas por lançamentos e reedições que pretendem marcar a efeméride dos cinquenta anos do golpe civil-militar no Brasil. Referência na área desde 2002, quando foi originalmente publicada pela Companhia das Letras, a quadrilogia do jornalista Elio Gaspari (A ditadura envergonhada/A ditadura escancarada/A ditadura encurralada/A ditadura derrotada) volta repaginada, revista e atualizada, agora pela Intrínseca, e também em versão e-book, com vídeos e áudios complementares. No romance K. e na coletânea Você vai voltar pra mim e outros contos, ambos da CosacNaify, Bernardo Kucinski, mais um jornalista de primeira linha e que teve a irmã Ana Rosa assassinada pelo aparelho estatal de repressão, faz uso de ficção de máxima qualidade para lembrar os anos da repressão e marcar a agonia da busca incessante por informações que pudessem levar ao paradeiro da ossada da irmã desaparecida. Uma sólida e consistente análise histórica do período nos é oferecida em Ditadura e democracia no Brasil, da Zahar, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, atualmente professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e que foi também militante de grupos de resistência armada à ditadura. São todas leituras recomendadíssimas.

Minha sugestão mais específica para essa semana que marca o cinquentenário do golpe, no entanto, concentra-se no romance Exílio, lançado em 2012 por Marcela Tagliaferri, pela Motor/Imã Editorial. É uma obra perturbadora, daquelas capazes de arrancar sem dó da zona de conforto, que invade os poros e demora a sair da gente. Consegue reunir criatividade literária e precisão informativa para tratar daquilo que costumo chamar de o horripilante necessário, fatos históricos abomináveis, mas que não podem ser esquecidos ou ignorados - nesse caso, as entranhas fétidas da ditadura. A escritora organiza sua narrativa a partir das tramas que envolvem quatro personagens de um mesmo núcleo familiar. São a parte pelo todo, figuras emblemáticas e representativas de papeis e espaços sociais típicos do regime de terror que se instalou no Brasil em 1964.

O protagonista é um empresário carioca bem sucedido e reacionário, que despreza os pobres e sente asco daqueles que chama de gentalha do subúrbio, de quem não quer nem passar perto, nem sentir o cheiro. Abomina os modos vulgares e a falta de cultura dessa ralé. É colaborador entusiasmado do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e informante convicto do Serviço Nacional de Informações (SNI), anti-comunista ferrenho, fervoroso defensor da ditadura. Não mede esforços nem sente mínimo remorso ou arrependimento por caçar, torturar, trucidar e eliminar todos aqueles que considera inimigos da pátria. Tem orgulho imenso de fazer parte dessa máquina de extermínio. "O mais importante em uma sessão de tortura é manter a tensão, o poder está nas mãos do torturador, é o seu papel retirar do inimigo a verdade, e ela só vem com a perda total da dignidade. Ele é aprisionado pela dor, e o desespero da impotência fecha o ciclo quando caem finalmente e entregam todas as informações. A humilhação vem com a perda de poder, incapaz de sair daquele lugar, totalmente dominado como uma presa indefesa. O triunfo era dado quando gritavam a derrota. Estavam entregues e deles se retirava o maior desejo: a traição, a pura delação", ensina o velho.

Ele é pai de Silvia e foi o responsável por cuidar quase sozinho (a esposa morreu muito jovem) da educação da menina, desde que ela tinha quatro anos. Tem pela filha verdadeira obsessão - que assume ares de incontido desejo sexual. É a mulher que ele quer possuir. Há um momento no livro em que o velho contrata uma prostituta que se veste e se comporta como a filha, a reproduzir até mesmo cheiros e gestos. Silvia tem consciência da perversão. Sente medo, não consegue ficar sozinha com o pai - lembra sempre de uma ocasião em que chegou de uma noitada e de um abraço que acabou sendo mais do que um sinal de carinho paterno. Na ocasião, assustada, deu um jeito de se livrar do abraço e saiu correndo para o quarto, seu esconderijo, temendo coisas mais sérias. Silvia bem que se esforça e se movimenta para escapar das garras do tirano, adora conhecer e frequentar a boemia carioca, mas não consegue alcançar efetiva independência. Nos momentos de aperto, corre para pedir ajuda para o pai. No romance, a moça transita o tempo todo entre essa proteção e a subserviência que sufocam, a transgressão que agride e tira do sério o pai e e a inexorável necessidade de tê-lo por perto para desatar nós e solucionar dilemas que aparecem.

Bem jovem, ela se casa com Vicente, engenheiro de classe média que fez opção por uma vida simples e sem luxos ou ostentações - e a quem o pai da moça considera abominável, detestável, uma aberração, um fracassado que não merece constituir família com uma legítima representante das elites abastadas e bem formadas do Rio de Janeiro. Vicente não pertence ao andar de cima. E o empresário jamais aceitará a união. Cínico e ardiloso, transporta despudoradamente para as relações domésticas e familiares as mesmas táticas que usava nos porões da repressão para arrebentar os comunistas. Sem limites, o canalha manipulador envenena o genro com as mais torpes difamações sobre a própria filha. Acaba convencendo Vicente de que Silvia o traía. O rapaz, até então seguro e companheiro, entra em parafuso, profunda depressão, fica transtornado. Passa a beber e a tomar remédios, desbragadamente. Desconfiado agora das noitadas da esposa, que ele sempre havia incentivado, passa a agredi-la, física e moralmente. O casamento vira um inferno, para deleite do empresário. A pedido da filha, que não sabia como lidar com a crise conjugal, o pai entra mais uma vez em cena, posa de bonzinho e, no toque final, aciona seus contatos na repressão. Consegue internar Vicente num manicômio. Lá, ele vive quinze angustiantes anos de isolamento, maus tratos, pancadas e choques elétricos quase diários.

Heroicamente, talvez movido pela esperança desesperada de rever o filho, Vicente resiste e consegue sair do hospício ainda com domínio de sua racionalidade e dimensão humana - apesar das marcas, tormentos e lembranças que carregará para sempre. Livre do inferno, sua primeira iniciativa é procurar Silvia - o que ele quer mesmo é ter notícias do rebento Rafael. O jovem (e o pai não sabia) tinha se envolvido com o movimento estudantil e organizações clandestinas de combate à ditadura. Lúcido, sonhador, cheio de esperanças, a entregar-se às utopias da geração dos 60, Rafael era o único a desafiar a empáfia e a truculência do avô, a quem enfrentava de peito aberto, em discussões duríssimas, das quais Silvia procurava sempre se afastar. O jovem foi também o grilo falante que tentou abrir os olhos da mãe e chamar a atenção dela para o despotismo e a trajetória de violências do empresário, figura conhecidíssima no submundo asqueroso da ditadura. Não conseguiu ser ouvido a tempo.

Refinado e bem elaborado também na linguagem, Exílio é narrado pelos quatro personagens, alternadamente, em percepções que vão se completando e se confrontando. Além deles, há um narrador onisciente, em terceira pessoa, que dialoga e trava interessantes batalhas narrativas com cada um dos protagonistas. A história é conduzida pela combinação de frases curtas e parágrafos longos, que fazem o leitor respirar com dificuldade. Admito: não consigo ser tolerante com a intolerância. Não consigo respeitar quem defende torturas. Senti raiva, muita raiva do empresário manipulador e que encarna em toda a plenitude a violência e a tragédia da ditadura brasileira. "Exílio, enfim, é um livro que renova a literatura contemporânea ao apresentar personagens vivos e reais. E por nos levar à reflexão sobre que danada de modernidade foi construída nesta terra.  Exílio, assim, se faz como um protesto à crueldade, à irracionalidade de homens que justificam suas ações mais mesquinhas através da necessidade de defesa da pátria", escreve o jornalista e escritor Maurício Melo Júnior, no jornal Rascunho

O reencontro e o diálogo final entre Silvia e Vicente são tensos, doídos, acachapantes, viscerais. É confronto entre vida e morte. Prisão e liberdade. Passado e presente. Confiança e traição. Ditadura e democracia. Silêncio e choro. Simbolicamente, o casal talvez esteja naquelas páginas derradeiras costurando novo pacto de convivência civilizada e (re)elaborando as condições para começar a viver o luto. Essa mesma oportunidade que mesmo os governos democráticos insistem em negar a centenas de famílias no Brasil, que tiveram seus entes queridos assassinados e desaparecidos pela ditadura, e a quem continuam procurando até hoje. 

Até quando?

domingo, 23 de março de 2014

UMA COLEÇÃO IMPERDÍVEL PARA QUEM GOSTA DOS CONTOS

08.CapaAverrosPq_publicar_ebook     08.CapaPenelope_publicar_ebook    08.CapaLigia_publicar_ebook    08.CapaUmaNoMercadoPq_publicar_ebook 

08.CapaXodoPq_publicar_ebook    08.CapaNaoVouFalar_publicar_ebook    08.CapaMiguelSanchesNeto_publicar_ebook


Serei breve, porque esse é o espírito da coleção. 

A caminhada começou com Averrós, de José Luiz Passos, que narra um diálogo curto (poucos minutos) entre o protagonista e um morador de rua. A conversa é só aparentemente inocente - e o mendigo sabe bem mais do que se imagina. Passamos em seguida por Penélope, escrito por André de Leones, trama que reúne uma atriz e um produtor de filmes pornográficos. Ela cuida da avó, que tem problemas de memória. Ele acabou de sair da prisão. E eles têm, os dois, medo do futuro, de que tudo dê errado. De novo. No terceiro volume - Lígia -, Victor Heringer joga luzes sobre Alex, um sujeito de barba espessa e cabelo curto, responsável por cuidar do senhor Mendes, 88 anos. O idoso insiste em chamar seu benfeitor de Lígia, o nome da esposa, já falecida. Quando Mendes morre, Alex está vestindo a calcinha e o sutiã de Lígia. Sérgio Fantini promove, em Uma no mercado, o reencontro de Sávio com uma ex-namorada, num ônibus. A conversa avança para mãos no ombro, carinhos mais ousados, outros toques e um revival que quase acontece, não fosse por uma notícia inesperada. Chegamos a Xodó, de Marcelo Moutinho, que fala sobre Rodrigo, adolescente que gosta de se excitar sexualmente com a boneca da irmã - ela descobre, mas guarda o segredo. Primeiro pacto cúmplice de adultos. Não vou falar sobre isto, mas por exemplo, de Luci Collin, reúne recados de pessoas diferentes enviados a Fréderic. São bilhetes curtos, objetivos, que se juntam para formar um mosaico e dar o tom um tanto misterioso da narrativa. Finalmente, em Senhoras da noite, Miguel Sanches Neto trata de fotografias que não ficam boas. O equipamento é de primeira. A culpa é da luz. Até que o fotógrafo... 

Todas essas narrativas fazem parte da coleção "Formas Breves", lançada recentemente pela E-Galáxia. É uma das iniciativas literárias mais bacanas dos últimos tempos - toda semana, somos presenteados com um conto, sempre no formato digital, e por preço bastante acessível (apenas R$ 1,99). "Eu coordeno um festival de literatura só dedicado a contos e contistas, o Festival Nacional do Conto, e estudo há alguns anos os possíveis caminhos dos contos num mundo cada vez mais portátil: você tem internet, livros, filmes e músicas quando e onde quiser, com os dispositivos móveis. Então que tal uma coleção em que você pudesse, com menos de dois reais, o preço de um picolé, comprar um conto e ler em qualquer lugar? Este é o princípio da Formas Breves", explica Carlos Henrique Schroeder, coordenador da coleção. Ele garante que não importa se o autor é conhecido ou anônimo - a preocupação é com a qualidade da história. Em breve, farão parte do time escritoras como Carola Saavedra, Ivana Arruda Leite, Andrea del Fuego e Elvira Vigna. Autores internacionais também serão contemplados, "de classicões como Ambrose Bierce, Virgínia Woolf e Ruben Dário até contemporâneos como Sérgio Chejfec e Mariana Enriquez", completa Schroeder. E não faltará, ele promete, espaço para iniciantes. "Recebo em média três contos por dia, dou uma peneirada, olho tudo com muito critério".   

Em sintonia com o Nobel de Literatura, que no ano passado premiou a canadense Alice Munro, contista de mão cheia, "Formas Breves" faz um convite para um mergulho no universo de um gênero rico e apaixonante, mas que lamentavelmente não é valorizado como mereceria - ao contrário, sofre ainda com os narizes torcidos e o rótulo de 'primo pobre' do nobre romance. Erro grotesco. Como escreve Miguel Sanches Neto em artigo publicado no jornal 'Valor Econômico' da última sexta-feira, 21 de março, "o conto é linguagem que se espraia de forma tensionada. Cerca em que os arames estão muito esticados. Nada pode ficar frouxo nesses arranjos. Dizer cada coisa encaminhando o leitor para o centro pulsante da história. Um bom conto, portanto, exige muito mais controle do que o romance e a crônica. Poderíamos dizer que nele a língua se encontra bem-acabada tanto do ponto de vista plástico quanto estrutural".

Comecei a organizar minha biblioteca digital colecionando os contos de "Formas Breves". Agora, fico toda segunda-feira na expectativa de uma nova história. Vale a pena.


http://blog.e-galaxia.com.br/formas-breves/ 





domingo, 16 de março de 2014

O CABEÇÃO DE SANTO ANTÔNIO


Que atire a primeira pedra aquele que nunca esticou os olhos e fez malabarismos com o pescoço para tentar descobrir o que o passageiro do banco ao lado estava lendo, no metrô ou no ônibus lotados. Quem dera fôssemos os homens capazes de conquistar poderes sobrenaturais semelhantes aos de Mel Gibson no filme "Do que as mulheres gostam", para descobrir o que se passa nas cabeças das nossas caras metades, amigas, desconhecidas ilustres. A recíproca é verdadeira - as mulheres também adorariam ter acesso privilegiado e antecipado às mensagens e informações que se formam nos cérebros masculinos. Humanos são seres curiosos. A vontade de saber é marca da espécie; não raro, com todos os riscos envolvidos, esse desejo é tão intenso que ultrapassamos os limites da curiosidade e resvalamos (ou mergulhamos) na bisbilhotice, recolhendo e nos deliciando com segredos de alcovas, de confessionários, de banheiros femininos e masculinos, de salas secretas de reuniões, de depoimentos sigilosos. Ter informações privilegiadas, além de massagear o ego (eu tenho, você não), permite invariavelmente tirar vantagem de tal exclusividade.  

Protagonista de A cabeça do santo, primeiro romance dirigido ao público adulto escrito por Socorro Acioli, Samuel tem um dom capaz de causar pontinha de inveja em todos esses incorrigíveis curiosos e bisbilhoteiros. Ao visitar a cidade de Candeia, no sertão do Ceará, ele só encontra abrigo e moradia numa imensa cabeça oca de uma imagem de Santo Antônio, que está no chão justamente por ser muito pesada. Não havia guindaste que conseguisse transportá-la para o topo da estátua, que por sua vez reinava descabeçada no alto de um morro próximo. Dentro do cabeção, em horários fixos, o rapaz era capaz de ouvir todas as orações e os pedidos encaminhados pelas mulheres da cidade ao santo casamenteiro. "Eram exatamente cinco horas da manhã quando Samuel começou a acordar, atormentado, confuso. Ouvia vozes de mulheres, várias, falando ao mesmo tempo. Talvez fosse pesadelo, pareciam as mulheres do Horto. Sentou-se assustado, acordado, mas as vozes não paravam. Mais alto, mais forte, e, sim, era reza". 

Com a ajuda do adolescente Francisco (a relação nasce inicialmente de uma chantagem feita por Samuel, mas torna-se rapidamente sincera), o protagonista não demora a perceber que aquele dom especial garantia a ele a chance de alcançar fama e dinheiro. Ele faz uso dos segredos femininos a que tem acesso para aproximar e formar casais. Funciona. Visto como milagreiro, aquele que conversa e entende o que diz o santo, ele começa a ser reverenciado. Dá entrevistas. Vira celebridade midiática. A artimanha assume ares de negócio lucrativo. Samuel agenda consultas, vende conselhos, alavanca vendas de imagens do santo. Traz de volta vida pulsante a uma cidade em franca decadência, esquecida no mapa, quase fantasma. 

A primeira metade do livro é divertida, leitura mais leve, sem muitas tensões, a construir o cenário, apresentar os personagens e o universo mágico daquele sujeito que consegue falar com o santo, embora já ofereça também pistas sobre os conflitos que virão. Porque Samuel cutuca interesses de gente graúda na cidade. "Candeia renasceu. Voltou à vida pelas mãos das mulheres com sua fé, fazendo novena ao redor da cabeça do santo, acendendo velas, rezando dia e noite e esperando uma oportunidade de falar com o mensageiro. (...) Vestiu o capuz preso na parte de trás da roupa. Tirou a corda da cintura, enrolou na mão direita e invadiu a cabeça de Santo Antônio afastando a cortina improvisada. Pulou nas costas de Samuel como um sapo, ou um bicho cheio de tentáculos. Enrolou rapidamente a corda no pescoço de Samuel e foi feliz nesse golpe, porque o seu ponto fraco era exatamente o sufocamento, o desespero de não conseguir respirar". 

Samuel chegou a Candeia para cumprir promessa feita à mãe, que no leito de morte dela havia pedido ao filho que fosse à cidade para procurar o pai e a avó, que ele não conhecia. Fez Samuel também jurar ainda que iria acender velas para o padre Cícero, Santo Antônio e São Francisco. Para saldar sua dívida moral, ele vaga pelas estradas quase como mendigo durante quinze dias, enfrentando fome e calor insuportáveis; em Candeia, depois dos primeiros dias de fama e alegria, vai precisar lidar, na segunda metade da história, com mistérios que envolvem traições conjugais, ira de mulher traída, assassinato, cachorros ensandecidos, criança abandonada e negociatas conduzidas por políticos locais. No fim, será preso e, para não ser morto, abandonará a cidade. 

A cabeça do santo bebe com vigor na fonte do realismo mágico - a ideia do romance, aliás, nasceu depois de uma oficina que Socorro fez com Gabriel García Márquez, na Escuela Internacional de Cine y TV de Santo Antonio (de novo!) de Los Baños, em Cuba. "Apresentei o projeto da Cabeça do santo logo na primeira aula, em espanhol, e acho que nunca vivi nenhum dia depois disso sem lembrar dos comentários elogiosos do mestre. Ele não disfarçava a alegria de imaginar o protagonista descobrindo os segredos de amor das mulheres. Pediu que eu provasse ser verdadeira a existência de uma cabeça gigante no sertão do Ceará e eu mostrei a filmagem da minha visita à bizarra cabeça do santo. Foi intenso e divertido discutir meu projeto com García Márquez, mas não tivemos tempo de aprofundar muito o enredo", conta a autora, em texto publicado pelo Blog da Companhia das Letras. 

O romance coloca ainda o leitor em contato com a forte devoção religiosa, às vezes fanatismo, e com o coronelismo revisto e atualizado, à luz dos tempos atuais. São marcas não exclusivas da região, mas ainda muito presentes no cotidiano dos nordestinos. Os capítulos são curtos - e, se há uma ressalva a fazer sobre o livro, está justamente nessa narrativa rápida, expressa, sem muito tempo ou disposição para aprofundar algumas passagens da narrativa. É quase como um avião que voa baixo e oferece visão panorâmica das tramas, sem pousar com mais sossego nos aeroportos que se anunciam durante a trajetória. Exemplo - são muitas as vozes e os pedidos ouvidos diariamente por Samuel, mas apenas uma das preces atendidas e que termina em casamento por obra e graça da intervenção do protagonista merece destaque (a união de Madeinusa com o doutor Adriano). Senti falta de outras vozes, outros desenlaces, outras peripécias e armações. É, na minha percepção, o calcanhar de Aquiles da história.

Para Pedro Fernandes, professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), "A cabeça do santo faz fronteira com a literatura popular – o cordel, o causo, a fábula, as histórias orais – e a literatura erudita – o romance maravilhoso e o fantástico aperfeiçoado pela literatura latina de nomes como o próprio Gabriel García Márquez, o romance picaresco da literatura espanhola, o romance de 1930 da literatura brasileira e antecessores como o escritor José de Alencar. (...) Tudo, harmoniosamente bem aproveitado na construção estrutural da narrativa que se reveste do tom de seu tempo: a objetividade, a não linearidade do narrado, a fragmentação e o diálogo, ainda que tímido, com a linguagem poética". 

E só para aguçar um pouco mais a ancestral curiosidade que nos move - o mesmo cabeção do santo que é responsável por desgraçar a vida do pai de Samuel é também quem vai operar milagre e garantir a felicidade do protagonista. 

quarta-feira, 12 de março de 2014

UM MENDIGO CULTO E A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA



Um mendigo intelectual (ou vice-versa, um intelectual mendigo) vaga pelas ruas violentas de uma metrópole. Não se conforma - foi abandonado, há dez anos, pela mulher amada, que deixou para ele apenas um bilhete lacônico que dizia "ACABOU-SE. ADEUS". Emocionalmente estraçalhado, ao mesmo tempo esperançoso, sonha permanentemente com a volta dela. Imagina poder reencontrá-la em cada esquina, em cada quebrada, em cada viaduto ou beco da cidade que (não mais) o assusta. Atordoado, tenta manter quem sabe o tantinho de chão de humanidade que ainda lhe resta recorrendo e citando, de cor, adágios de Erasmo de Rotterdam (1466-1536), teólogo holandês considerado um dos expoentes do humanismo iluminista. É a partir dessas referências constantes ao pensador europeu que o protagonista estabelece derradeiro ponto de conexão com o que ainda lhe sobra da ideia de civilização. É também o movimento que garante  a ele momentos de lucidez (ou de delírio?), a estratégia que parece ter encontrado para enfrentar o submundo em que vive, gritantemente marcado pela exclusão, criminalidade, alcoolismo, brigas, mortes e abusos sexuais. 

Erasmo funciona, assim, como elemento de reforço da condição humana do mendigo, memória daquilo que ele já foi, a remeter ainda aos tempos gloriosos de convivência e paixão com a amada imortal. E é esse personagem perturbado pela frustração de um amor perdido quem nos conduz pelas 127 páginas de "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam", escrito por Evandro Affonso Ferreira e vencedor do Prêmio Jabuti de 2013, categoria romance. O trecho da obra destacado a seguir (página 35) é representativo da narrativa e revela como o autor, com extrema habilidade literária, consegue dar saltos harmônicos e costurar tramas aparentemente tão distantes. Evandro, aliás, já contou que a ideia do livro surgiu quando, ao andar pelo Centro de São Paulo, contou 95 mendigos, num espaço de quinze quadras. Ficou estarrecido.

"Ficarei todas as noites esperando-a na calçada do outro lado. Poderá ser amanhã; ou depois de amanhã; ou no último dia da mostra desse magistral diretor japonês. Vou encontrá-la. Poderá ser mês que vem - no momento em que ela estiver saindo de hospital qualquer. Poderá ser ano que vem - quando eu estiver mais uma vez, diante de uma vitrine, vendo por intermédio televisivo outra tragédia gigantesca. Colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do homem em todas as formas. Estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizem que tinha a convicção que seria possível pôr termo aos conflitos que dividem os homens e os povos, sem violência, por concessões mútuas. Veja: um dos três maltrapilhos alcoólatras caiu de bruços. A-hã: testa toda ensanguentada. Miseráveis".   

Sem proselitismos palanqueiros e escapando dos discursos panfletários - não precisa desses recursos -, investindo firme na descrição minuciosa desse mundo-cão em que está mergulhado, o protagonista nos tira de nossa zona de conforto e é mais um a lembrar que estamos perigosamente banalizando a violência e naturalizando as desigualdades. Aceitamos viver em uma megalópole doente, como se essa relação fosse normal, tranquila, "é o que temos para hoje". Somos capazes de andar pela Praça da Sé e olhar para as crianças ali abandonadas e perdidas sem manifestar nesga de indignação. Fazem parte do cenário urbano, a ele já foram incorporadas. Trafegamos aceleradamente pela cidade transformada em gigantesca autopista, sempre com os vidros escuros fechados, travados. Blindados. Não queremos ser abordados. Temos medo da nossa infância. Asco? Ojeriza? São cada vez mais comuns e corriqueiros os apelos por ações de limpeza social, a defender abertamente que essa escória que invadiu as ruas seja retirada do espaço público, custe o que custar, à força, se preciso for, para que a cidade possa de novo pertencer aos "cidadãos de bem". O horror. 

"É difícil a tarefa de viver - principalmente na rua. Amontoados uns sobre os outros nas praças empregamos com maus resultados qualquer traçado paisagístico. Somos o cancro da estética. Uma vez ouvi senhora idosa dizendo para outra: essa gente enfeia demais a cidade. Esqueceu-se de dizer que a tornamos mais fedentinosa também". Evandro joga esse submundo fedorento e indesejável no nosso colo e, sem fazer barulho, grita: "esses sacos de merda também pertencem a você, meu caro leitor. Estamos juntos. Ocupamos o mesmo espaço. Segregar não resolve. Ao contrário". Na loucura e em seus lúcidos delírios, lampejos de racionalidade, o mendigo intelectual nos faz olhar para um espelho que reflete a máxima estupidez humana.

A leitura não é fácil, exige paciência, persistência, não apenas porque cada parágrafo sugere um soco no estômago, e é preciso respirar antes de levantar e seguir em frente. A linguagem é marcada pela oralidade. E o monólogo com um interlocutor imaginário, com quem o protagonista supostamente "conversa", é também recheado de palavras herméticas, expressões difíceis, um vocabulário rebuscado, tenso, que nos faz avançar lentamente pelas páginas. Ao mesmo tempo, porque intensa, visceral, a história nos empurra a seguir até o final. 

É uma briga literária que vale muito a pena. Porque, afinal, "somos todos igualmente miseráveis". 

sábado, 8 de março de 2014

HOMO SAPIENS POLEGARIS

Da série "Meus namoros com a ficção..."


A temporada havia sido impecável - onze jogos, onze vitórias. Ataque mais positivo do torneio, três goleadas sensacionais aplicadas durante a competição, com direito ainda ao artilheiro do campeonato. Um dos tentos anotados, se possível fosse, verdadeira obra de arte, concorreria certamente ao prêmio Puskas de gol mais bonito do ano. Faltava a última, a derradeira. A decisão. Desejara desde sempre e ardentemente aquele momento, muitas noites sonhara com a finalíssima (teve alguns pesadelos também, é verdade), os times perfilados, o estádio cheio, a vibração das torcidas, bandeiras tremulando, as cores espalhafatosas dos uniformes contrastando com o verde vivo do gramado. Jogava como favorito.

O time do coração já estava em campo, esquadrão completinho, sem desfalques por cartões ou contusões. Tudo pronto. O árbitro fez sinal de que deveria ser respeitado um minuto de silêncio. Apitou. Valendo. O garoto respirou fundo. Não tirava os olhos da telinha. Nem piscava. Apenas mexia as mãozinhas nervosas. Freneticamente. Os dedões eram capazes de movimentos espantosos - tenho cá comigo, aliás, que depois da conquista do polegar opositor, longo e com maior capacidade de rotação, que ajudou a nos diferenciar dos antigos primatas, um dos próximos avanços evolutivos da nossa espécie será alcançar habilidades extraordinárias com esses nossos incríveis dedões. O máximo de movimentos num curtíssimo espaço de tempo, em áreas minúsculas. É só contemplar o que os garotos são hoje capazes de fazer com as teclas quase invisíveis dos celulares. Quase mágica. Talvez saia daí uma nova espécie mesmo, o Homo sapiens polegaris. Darwin ficaria orgulhoso. A seleção das espécies em marcha.

O jogo, como era de se esperar, tinha começado difícil, truncado. Amarrado no meio do campo, marcações fortes dos dois lados. Caramba, não estava impedido, já está difícil chegar na área e esse bandeirinha safado ainda marca o que não existiu. Não dá, é um pilantra. O tira-teima confirma a posição irregular. O garoto, tenso, coração aceleradíssimo, não se deu por vencido. Também, não marcou falta no lance anterior... Foi falta, ouviu? Falta. Merecia até amarelo. Está roubando. É um roubão! Conversava de igual para igual com a telinha, como se a máquina pudesse entender. Responder. Falava alto. Gritava. Mandava o comentarista calar a boca.Esse cara é um pé frio, ele abre a boca e dá azar. Sai tudo errado. É sempre assim. Tira ele daí! Sai logo! Fica quietinho, seu azarado.

A irmã mais velha suplicou por favor, fala um pouquinho mais baixo, não estou conseguindo me concentrar para fazer a lição de casa. Por favor. Saiu de cena rapidinho, indignada, praguejando. Tinha sido expulsa da sala. Impropérios impublicáveis. Você é pé fria também, some, vai para o seu quarto. Estou nervoso, não está vendo? Foi o tempo de se concentrar novamente e de ver encaixados, lindamente, três dribles em sequência do craque da camisa dez, que invadiu livre a área adversária e tocou de cavadinha para o fundo do gol. Deu até para ouvir o "puffffff" inconfundível das redes sendo estufadas.

As mãos finalmente dançaram soltas no ar. O moleque liberou um grito gutural, provavelmente muito parecido com aqueles que os homens das cavernas deviam mandar quando conseguiam dominar a caça, comemorando a conquista. Garantindo a sobrevivência do bando. Ah, moleque! Gol, golaço, chupa, golaço, chupa, chupa! Time do coração na frente. A irmã fez ainda última e desesperada tentativa. Mãe, assim não dá, esse garoto parece um louco. É só um jogo. Ouviu o berro que ele deu? Quase morri do coração. Não é possível, não é normal. Nem bem terminou de falar e ela, que imaginava que o limite já tinha sido atingido, ouviu, altos brados, palavrões que jamais imaginou existirem. Ficou vermelha - mas até tentou memorizar alguns, em caso de precisar usá-los com alguns amigos malas insuportáveis. O adversário tinha empatado.

Goleiro burro, frangueiro, olha o gol que você me toma. Meu deus, como é ruim! E esse zagueiro? É burro também! Burro demais! Não sabe jogar, não sabe nada de bola. E se acha, é um SeAchão. Vai tomar banho. Vai sair. Chega. Entra o reserva. E você que está entrando no lugar dele, vê se faz alguma coisa de útil! Se não fizer, vai sair também. Façam o favor de jogar bola! Vontade, ouviram! Raça! Não aguento mais vocês! A voz já saiu esganiçada, lábios tremendo. O garoto tentava engolir o choro e continuar em frente. A mãe achou que tinha dado. O barulho era infernal. Num pulo, chegou à sala. Acabou. Vou desligar essa porcaria. Não dá, filho. Que história é essa? Você vai ter um troço. À toa. Por nada. Não vale a pena. É só um jogo. Não pode ser assim. Por favor. O moleque nem ouviu, embriagado pelo que acontecia na telinha, preocupado em não errar.

O pai, que estava ouvindo os gritos mesmo com o chuveiro ligado no modo inverno e que acabara de sair do banho, fez menção de entrar na conversa. Chegou a dizerfilho... Recuou. Bateu a nostalgia. Lembrou que era exatamente assim, gritos e nervos à flor da pele, que ele disputava suas finais de campeonato no velho Atari, no ancestral Telejogo. Os polegares não precisavam ser tão hábeis, é verdade, os controles eram quase primitivos (botãozinho vermelho único), quando comparados às parafernálias atuais. As imagens, então, meu deus... em preto e branco, ou estourando cores nada nítidas, eram como pontinhos e pauzinhos rabiscados em paredes de cavernas. Não tinha canto de torcida, uniforme um ou dois, possibilidade de fazer substituições, arenas padrão FIFA, narradores, comentaristas, PES 2014, Nintendos Wiis... Eram, contudo, eventos únicos. Épicos do futebol virtual. Partidas tensas. Inesquecíveis. Os pais (avós) diziam que não era possível, que era só um jogo, que se continuasse daquele jeito iriam guardar o aparelho por um tempo. O pai sofria. Era mais forte que ele. A herança foi implacável. O filho sofre. É mais forte que ele.

O pai chega mais perto do moleque, a essa altura com o rosto quase mergulhado na tela cintilante e de alta definição do computador. As imagens são lindas, alucinantes. O garoto treme, elétrico. Está arfante, sem parar de gritar com seu time. É final de campeonato no vídeo-game doméstico. O velho sorri, discretamente. Cerra os punhos. Começa a torcer. Vai, filho. Bem baixinho. Confia nos polegares - e no título - do rebento.     

MARÇO 2014

UM "THELMA E LOUISE" CRIATIVO E COM FORTE SOTAQUE GAÚCHO





Era mais um daqueles que estava na escrivaninha de cabeceira, naquela tradicional e infindável - sempre a crescer - "fila dos próximos". Finalmente consegui devorá-lo. E recomendo. "Todos nós adorávamos caubóis", escrito por Carol Bensimon, chama a atenção e cativa, deixando lembranças, porque, sem parafernálias ou pirotecnias, consegue contar uma boa história. A força da obra está nas vivências das personagens, generosamente compartilhadas com o leitor. Vale lembrar que Carol foi uma das autoras selecionadas para fazer parte da coletânea "Os melhores jovens escritores brasileiros", lançada em 2012 pela renomada revista Granta. Merecido.

Em "Todos nós...", ela costura as angústias e as conquistas de duas jovens, com seus vinte e poucos anos, que se conhecem em Porto Alegre, no curso de Jornalismo. Apaixonam-se - quase amor à primeira vista. O namoro é tão intenso - não são poucas as vezes em que, tresloucadas de paixão, transam no carro ou em banheiros públicos - quanto passageiro e, sem muitas explicações ou exercícios de racionalidade, escorrega pelos dedos, esfria. Acaba. Cora vai estudar Moda em Paris. Julia decide terminar Jornalismo em Montreal, no Canadá.

Anos depois, voltam a se encontrar na capital gaúcha e decidem cumprir promessa que tinham feito ainda nos tempos de faculdade - viajar juntas, só as duas, sem rumo definido e de carro, pelo interior do Rio Grande do Sul, passando pelas Serras e chegando aos limites dos Pampas. A trama assume ares de "narrativas de estrada". Impossível não estabelecer conexões com as sensacionais Geena Davis e Susan Sarandon no clássico filme "Thelma e Louise" (1991) - aqui, com sabores e cheiros tipicamente gaúchos. Nessas andanças, vêm à tona os estranhamentos e as expectativas comuns, o que as une e o que afasta.

Cora é bissexual assumida. "Sim, eu me sentia atraída por garotas. Tecnicamente, eu era bissexual. Minha linha do tempo teria todos os indícios. (...) Mas eu disse bissexual. Garotas e alguns garotos. Ou, para ser mais exata: garoto. Garota. Garota. Garota. Garoto. Garota. Garota. Garoto. E daí seguindo usualmente essa proporção. Com os garotos, eu ficava por inércia. Com as garotas, por encantamento". Enfrenta preconceitos e exclusões, o inconformismo da própria mãe que, "numa tarde modorrenta, abriu a porta do meu quarto. Não saberia explicar o porquê, ela sempre batia, quer eu estivesse acompanhada ou sozinha, aquela era uma norma na qual ela gostaria de acreditar. Porém, nessa tarde, com uma desculpa qualquer na ponta da língua, minha mãe entrou no meu quarto de forma totalmente inesperada, talvez desejando mais do que tudo ter que usar o raio da desculpa, a qual poderia ser: vocês precisam de alguma coisa?, vou dar uma saída, hoje não era dia de buscar tua jaqueta na costureira? O que viu, no entanto, dentro do quarto repleto de ícones que ela não compreendia, fez com que fechasse a porta em pouquíssimos segundos e corresse para o andar de baixo em busca do telefone. Discou para o ex-marido. Mesmo atordoada, ela teve a delicadeza de passar pelas perguntas habituais enquanto procurava uma maneira de descrever a cena, a amiga da tua filha deitada na cama, uma calcinha com uma estampa quase infantil, tua filha com a mão na -, a mão por dentro da calcinha dela, eu sempre soube que a Cora ia fazer isso com a gente". Segura de si, quase arrogante, às vezes dona da verdade, intempestiva e inflexível, Cora sofre ainda com a separação dos pais e com o fato de o pai ter ser casado novamente com uma moça muitos anos mais nova que ele - quase da idade de Cora.

Nascida e criada no conservador interior do Rio Grande do Sul, Julia foi viver em Porto Alegre, nos tempos de faculdade, sob os rigorosos cuidados e olhares atentos de freiras, em um pensionato. É também bissexual - não assumida, com medos e vergonhas. "Quanto a Julia, é claro que ela tinha mais chances de angariar simpatias. Em primeiro lugar, ela era menos estranha do que eu. Eu não ficaria nem um pouco surpresa se alguém de repente elogiasse seus brincos. Em segundo, porque estava sempre disposta a agradar, mesmo quando percebia certa hostilidade no outro. Isso já tinha me deixado irritada umas tantas vezes no passado. E, no entanto, havia também em Julia uma certa dose de inadequação, como se apenas uma série de acasos, uma longa cadeia deles, pudesse explicar sua presença naquele lugar". O passado familiar é um fantasma que também assombra e com o qual Julia é obrigada a lidar - um irmão dela morreu com apenas sete meses, tragédia que, claro, deixou feridas profundas, e que durante muito tempo foi escondida da garota.

No sobe e desce da vida, que faz bater no topo das euforias para no momento seguinte arremessar em depressões profundas, as duas jovens definem as regras e escolhem as armas que acham mais adequadas para travar seus duelos interiores e também aqueles que explodem entre elas. O leitor é conduzido por esses "dez passos para trás, bem devagar, vamos discutir a relação". Porque, afinal, todos nós adoramos caubóis.  

FEVEREIRO 2014

PRIMEIRO DIA

Da série "Meus namoros com a ficção..."


Na escuridão da madrugada, brincava de identificar objetos do quarto. Já conhecia aquele mapa de cor, é verdade, tudo ali tinha a cara dela. Mas o exercício de rastreamento sem luz servia para ajudar a passar o tempo. Localizou sem dificuldades a coleção do Harry Potter na estante. O que eu gosto mais é A ordem da fênix. Li de uma vez só, rapidinho. Chorei horrores com a morte do Sirius Black. Maldita Bellatrix. Tinha visto também todos os filmes. Desviou o olhar à esquerda e parou uns segundos na cadeira amontoada de roupas, quase um armário improvisado. Camisetas, pijamas, meias limpas e usadas, calcinhas, tiaras, pulseiras e até um caderno detonado, quase sem folhas. Torre de Babel. Ou de Piza - já estava até tortinha, quase caindo. Que pilha. Preciso arrumar essa zona. É que dá uma preguiça... Encontrou a mochila colorida, encostada no pé da cadeira. Não resistiu - fez mais uma revisão mental. Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes. É, acho que peguei tudo. Será que não estou esquecendo nada mesmo? Repassou tudo de novo, mais uma vez, só por segurança. Vai que...Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes. Ouviu bem baixinho o som de uma televisão. O vizinho também estava acordado, vendo um filme. E tem tiros e bombardeios, acho. Tentou desligar, não prestar atenção. Já tinha virado de lado, experimentado de bruços, puxado o lençol, jogado o travesseiro no chão, mão apoiando a cabeça, pernas cruzadas, barriga para cima. Nada. Olhos bem abertos. Arregalados. Insônia. Angústia. Aquele friozinho que sobe pela espinha, bate na nuca, faz estremecer, toca de leve a barriga, uma dorzinha, coisa pouca, vira rapidamente um aperto no coração, até se transformar em garganta seca. Preciso tomar água. Foi até a cozinha, tateando, sem acender a luz. Será que vai dar certo? Não sei se vão gostar de mim. Sei lá, todo mundo lá já se conhece, os grupos estão formados, vou ser uma estranha. No dia do teste, pareceram legais. Até conversei com uma garota sobre as manifestações do ano passado. Ela também tinha lido Capitães de Areia. Gostava dos Beatles. Adorou meu óculos. Mora aqui pertinho. Bem bacana. Simpática. Mas foi rapidinho, quase nada. Acho que ela foi com a minha cara. Será? Ai... Teve vontade de chorar, uma lágrima quase escapou. Respirou. Outra vez. Mais uma. E os professores? As provas serão diferentes, já sei. Menos testes, mais questões escritas, muita discussão, interpretação de texto. Gosto. É, prefiro. Vou precisar estudar mais ainda, é fato, me organizar melhor. Mas acho que encaro. É. Acho que sim. Não sei. Talvez. Vou me esforçar. Ai, estou com medo, medo, muito medo. Estava suando, mãos molhadas, frias, o coração acelerado. Voltou para o quarto. Olhou para a roupa que tinha separado para o primeiro dia na nova escola - uma camiseta branca básica, lisa, shorts jeans, tênis preto. Tudo bem simples - mas muito especial, escolhido a dedo, depois de inúmeras tentativas. Na verdade, tinha passado boa parte do dia anterior testando opções, na frente do espelho, consultando a mãe a cada nova possibilidade e combinação. Está bom? Será que as meninas vão assim? Não quero parecer metida, esnobe. Ai, que difícil. Substituiu o shorts jeans por um vermelho. A porta do armário rangeu. Ficou esperando a bronca, vinda do quarto dos pais. Ninguém reclamou. Nem o irmão, que nessas horas não perde a chance de resmungar e de soltar um "boa, valeu, muito obrigado por me acordar". Só ela estava acordada. Sentiu o suor escorrendo pelo pescoço. Não conseguia se aquietar. Era mais forte do que ela. Muito mais forte. O ônibus passa seis e trinta e cinco. Já fiz o teste. Nessa hora não tem muito trânsito. Em meia hora chego lá. É quase uma reta. Aí é só mais uma caminhadinha, quatro quarteirões, dez minutos, no máximo. Vou ficar esperando o sinal no pátio. Não, melhor subir para a sala. Será que pode? Se tiver alguém lá, me apresento, puxo conversa. Do que será que eles gostam de conversar? Calma, calma. Preciso ir com calma. Hermione Granger vai ter que se segurar. Como é difícil. Vai dar tudo certo. Eu sei, vai dar tudo certo. Pegou-se falando em voz alta. Tomou um susto. A mãe vinha entrando pelo quarto, sempre no escuro. Acordada a essa hora, filha? Ah, mãe, não consigo dormir. Estou muito ansiosa. Não paro de pensar na escola nova. E se não der certo? A mãe se aproximou. Abraçou a garota bem forte. Já estavam quase do mesmo tamanho. Acendeu a luminária de cabeceira. Deitou a cabeça da pequena no colo. Fez cafuné. Começou a montar um discurso cheio de pompa e circunstância, pensou em dizer que o novo assusta mesmo. Ainda hoje, toda vez que vou para uma reunião, pessoas que não conheço, sinto esse mesmo frio na barriga, fico me perguntando se vou agradar, o que vão achar de mim. Tento calcular os gestos, o tom de voz. Fico olhando as expressões de cada um. Mas chega uma hora que eu relaxo. Todos os dias a gente passa por essas provações. A vida testa a gente o tempo inteiro. Mas achou que não era o caso. Recuou. Preferiu guardar o silêncio, a mão direita acariciando o rosto da filha, a esquerda continuava a fazer cafuné nos cabelos encaracolados. O pai apareceu na porta. Tinha ouvido vozes, ficou preocupado, queria saber o que estava acontecendo. Olhou. Entendeu. Deu um beijo na testa da filha, quase adormecida. Te amo! Ela ainda ouviu, bem distante, lá longe, quase num sussurro. Já estava sonhando. Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes...

JANEIRO 2014

FILHOTES DA DITADURA

Da série "Meus namoros com a ficção..."


O muro naquele trecho era baixo, pouco mais de um metro. Não tinha nem o antiquado e carcomido arame farpado com cacos de vidro nem a cerca eletrônica com câmeras de vídeo, parafernália moderna de segurança tão comum nos prédios de luxo da cidade. Alto, esguio, barba por fazer, uns vinte anos, André vestia camiseta preta e calça de moletom da mesma cor. Joana estava de cabelo preso, agasalho também preto, com capuz, mangas arregaçadas, bermuda jeans, tênis colorido e sem cadarço. Lino, o mais velho, perto de 40 anos, carregava uma mochila nas costas (parecia pesada) e, coincidência, trajava camisa preta de gola, mangas longas. Conversavam em tom bem baixo, quase sussurrando, como se não quisessem ser ouvidos. Eram quatro da manhã. A avenida estava praticamente deserta. Olharam para a direita, miraram a esquerda. Tudo certo. Num aceno de cabeça de Lino, movimentos ensaiados e sincronizados, pularam o muro, sem dificuldades.

Começaram a caminhar com passos largos, ritmados, deixando para trás túmulos imponentes e garbosos de várias famílias quatrocentonas paulistanas. Contornaram a capela, paredes amareladas já descascando. Joana fez o sinal da cruz, três vezes. Beijou o crucifixo preso a um cordão enrolado no pescoço. A missão daquela madrugada nem de longe lembrava os agitados dias de junho, quando tinham marcado presença nas manifestações que chacoalharam a capital paulista, sempre vestidos de preto, a queimar bandeiras vermelhas, dos movimentos negro e homossexual e a gritar "sem partido, minha única bandeira é a do Brasil, comunismo nunca mais!". Na escuridão silenciosa, André seguia um pouco atrás, ressabiado, um frio na barriga, tentando não aparentar medo. Não gostava dessa coisa de estar tão perto dos mortos. Tinha um nó na garganta, a sensação de estar sendo vigiado. Lembrou das histórias de fantasmas que ouvia da mãe, quando criança. Quase ao mesmo tempo, os três viraram à esquerda, estreita e longa alameda com jazigos ainda mais suntuosos dos dois lados, a marcar o caminho. Avistaram, barranco abaixo, um antigo casarão.

Lino fez sinal de positivo, confirmando satisfeito - 'é ali mesmo'. Desceram o escadão correndo, de dois em dois degraus. Plano seguido à risca, tudo previamente combinado, Joana deu a volta no casarão, certificando-se de que estavam realmente sozinhos. Sorriu. Área limpa. André deu uma voadora e meteu o pé na porta de madeira, que não ofereceu resistência e se abriu, rangendo. Lino já tinha retirado da mochila duas marretas. Joana agora segurava uma lanterna que timidamente iluminava o ossário - o suficiente para que, naquela penumbra, uma a uma as gavetas fossem sendo estouradas e violadas, a marretadas. Dezenas delas foram destruídas, sem dó ou pudor, com as ossadas sendo violentamente atiradas no chão, com raiva e adrenalina a mil. Lino e André espumavam, em êxtase. Tinham sangue nos olhos. "Filhos da puta!", praguejou o mais velho, fazendo questão de pisar em crânios e fêmures, agora todos espalhados e misturados, sem os pequenos cartões com informações preciosas, como datas e locais de origens. "Terroristas de merda, vergonha da nação!". Acertou um chute num crânio, que se espatifou na parede. Cuspiu em um pedaço que foi parar perto da porta, já do lado de fora do casarão. Elétrico por conta do comportamento do amigo, André, ensandecido, continuava distribuindo marretadas nas gavetas. "Odeio todos vocês. Escória do Brasil. Vermelhos do caralho". Joana continuava alerta, na entrada do ossário, montando guarda, uma picareta na outra mão, atenta a qualquer movimento estranho ou presença indesejada.

A invasão demorou pouco mais de dez minutos - e deixou fragmentos de madeira, gesso, cimento, sacos plásticos e ossos por todos os lados. Escreveram numa das paredes externas do ossário: "Viva a ditadura!". Em mais um aceno de Lino, guardaram as ferramentas na mochila e saíram correndo. Refizeram o caminho - o escadão, a alameda com os túmulos grandes, a capela, o muro. Ofegantes, já do lado de fora do cemitério, tarefa cumprida, respiraram aliviados. "Vamos beber no boteco ali da esquina, até amanhecer. Agora não passa ônibus. Merecemos. Precisamos relaxar e comemorar. Deu tudo certo", convidou Lino. Os três se abraçaram.

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Olhou pela janela da frente. A casa estava cercada. Tirou a arma da cintura - um velho revólver, que já tinha travado numa operação de invasão a um banco -  e decidiu tentar escapar pelos fundos. Não deu tempo sequer de chegar ao quintal. Ouviu o estampido seco, rápido. Sentiu dor lancinante, perto do joelho. Tombou, já sem muita consciência de onde estava. Os chutes vieram de todos os lados - na cabeça, nos ombros, no estômago, no joelho ferido. Desmaiou. Foi encapuzado e arrastado para uma veraneio cinza, placa fria.

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- Fala, comuna safado! Quem mais participou do roubo ao banco do Centro?

Ele era um farrapo humano, ferimentos espalhados pelo corpo, hematomas, dentes quebrados, ouvidos sangrando. Não conseguia falar. Mesmo que quisesse. Pensou em soltar informações falsas, para despistar, ao menos ganhar tempo, parar de tomar porrada. Não articulava as palavras. Começou a se contorcer, freneticamente. Choques elétricos. Um meganha chegou por trás e deu-lhe um murro na nuca. Curvou-se. Na volta, sem conseguir medir ou controlar os movimentos, bateu violentamente a cabeça na parede. Mais choques. Mijou. Cagou. Gritou. Palavras desconexas, desesperadas. Ninguém ouvia.

- Quero nomes, filho da puta. Me dá os nomes dos canalhas malditos! Todos eles. Você sabe. Você sabe! Fala, seu merda!

Jogaram água nele. Aumentaram a voltagem dos choques. Com um alicate, lentamente, arrancaram-lhe as unhas dos pés. Uma a uma. Outro meganha deu última tragada num cigarro, para depois apagá-lo no peito de Cesar, codinome Camilo, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e integrante da célula de mobilização e comunicação da organização comandada pelo temido Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira, e que tinha sido friamente assassinado em emboscada na Alameda Santos alguns dias antes.

Arrastaram-lhe para perto de um enorme tanque. Água imunda, barrenta. Fétida. Foi puxado pelos cabelos - e mantido debaixo d'água por quase um minuto. Debateu-se, em desespero. Tentou respirar. Engoliu água. Vomitou.

- Deixa de ser burro, animal. Ninguém vai te ajudar. Acabou para vocês. Vamos pegar todos, um por um. Mas antes você vai falar.

A cabeça foi novamente mergulhada no tanque. E mais uma vez. Outra. Quase sem tempo para que ele pudesse recuperar o fôlego. E assim foi por mais de meia hora. Sentiu o coração estourar. O corpo inteiro estremeceu. Ainda pode sentir um cabo de vassoura sendo enfiado no ânus, ainda com a cabeça na água. Tentou buscar o ar, de novo. Não conseguiu. O corpo foi amolecendo, aos poucos. Lentamente. Puxou o ar. Não soltou. Já estava morto quando tiraram a cabeça dele do tanque. Era uma massa sem forma de órgãos. Tinha sido brutalmente torturado, durante três dias. No chão, desfalecido, sem vida, ainda levou pontapés. Urravam de raiva. O ódio era maior ainda, porque Cesar não tinha falado.

- Filho da puta, filho da puta. Canalha. Não falou. Burro. Vai queimar nos infernos, terrorista da porra. Um a menos! Viva o Brasil!, gritou o chefe dos torturadores, que ordenou que fosse seguido o procedimento operacional padrão. Cesar deveria ser enterrado como indigente, em vala clandestina.

- Vocês sabem o que fazer. Não deixem pistas. Não digam nada aos parentes. Será mais um que sumiu. Não vai fazer falta.

Cantaram em coro o hino nacional.

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Acordou estranhamente cedo naquela sexta-feira, emenda do feriado de Finados. Ainda estava tocada, abalada. O dia anterior tinha sido emocionalmente intenso - participara de um ato político que homenageara os mortos e desaparecidos pela ditadura e que exigia ainda que as ossadas agora guardadas no cemitério do Araçá, região oeste de São Paulo, fossem finalmente identificadas. Há fortes suspeitas de que algumas delas possam ser de militantes assassinados pelo regime de terror. Na cama, pelo celular, acessou o noticiário da internet. Deu um grito horroroso. "Ossário é invadido e violado no cemitério do Araçá", dizia a manchete de um dos portais.

Jogou longe os lençóis, tropeçou nos chinelos. Trocou-se em menos de cinco minutos. Nem tomou café. Precisava ir correndo ao cemitério. Uma das ossadas guardadas naquelas gavetas criminosamente arrebentadas a marretadas durante a madrugada provavelmente era do pai dela. Cesar. Ou Camilo. Camila - evidente homenagem à alcunha de guerra do militante da ALN - tinha só dois anos quando o pai foi preso e trucidado pela ditadura. Desde aquele longínquo dezembro de 1969, a família peregrina incansavelmente, em busca de informações sobre o paradeiro do companheiro de Marighella. Sempre esbarraram em negativas, falsas promessas, pistas desencontradas, registros fragmentados, ausência total de vontade política. Sofrimento sem fim.

As esperanças renasceram quando a vala clandestina do cemitério de Perus foi descoberta e aberta, em 1990, na administração da prefeita Luiza Erundina - que, aliás, também participara do ato político no Araçá, no dia de Finados. Mas a frustração que veio em seguida talvez tenha sido maior ainda. As ossadas passaram anos empacotadas e empilhadas num canto de um galpão quase abandonado na Universidade Estadual de Campinas, até serem transferidas para o Araçá. Mesmo depois de quase trinta anos da redemocratização do país, os familiares continuam lutando para que as ossadas sejam examinadas e identificadas. Permanecem firmes, embora às vezes a agonia a a sensação de abandono e fracasso sejam quase insuportáveis. Camila não se conforma - lembra que já passamos pelos governos do sociólogo uspiano, do líder operário do ABC e da militante presa e torturada. Em graus e situações diferentes, os três foram vítimas da ditadura. E nenhum deles, avalia, enfrentou de fato o desafio de exorcizar os fantasmas dos anos de chumbo. Nenhum deles garantiu o amplo direito à justiça. à verdade e à memória.

Naquela manhã de sexta-feira, Camila torcia para que o metrô andasse muito mais rápido. Não conseguia esconder a tensão. Mexia as pernas, batia os dedos na capa do livro que carregava (nem pensar em se concentrar na leitura de "Barba ensopada de sangue", romance premiado de Daniel Galera), olhava de um lado para outro do vagão. Tinha medo brutal de ter perdido os últimos vínculos materiais que poderiam ligá-la ao pai. Tinha as memórias, as histórias narradas pela mãe, pelos avós, pelos amigos de militância. Tinha fotos do pai com 22 anos, pouco antes de ser preso e assassinado. Mas queria o corpo. O direito ao luto. O velório. O enterro. O ritual de passagem. A despedida, tão necessária à espécie humana.

Subiu as escadas rolantes aos saltos, atropelando as pessoas, sentindo o coração bater na boca. No ponto de ônibus, bem em frente ao cemitério, estavam sentados dois rapazes - um jovem, outro mais velho, mochila nas costas - e uma garota, cabelos presos. Os três vestiam camisas pretas. Os olhares se cruzaram, fração de segundo, e rapidamente se desviaram. Camila entrou apressadíssima no cemitério. Queria ter notícias do pai. Precisava ter notícias do pai.

Depois dos brindes e da bebedeira de comemoração, que invadiram a manhã ensolarada da sexta-feira, Lino, André e Joana continuavam esperando o ônibus para voltar para casa. Tranquilamente. Impunemente.

DEZEMBRO 2013

A INACEITÁVEL TENTATIVA DE PROIBIR A PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS


O movimento dos músicos que de forma autoritária tenta proibir a livre publicação de biografias pretende evidentemente cercear a liberdade de expressão e ter sob fino controle as narrativas que serão construídas sobre eles. Desejam ardentemente transformar a História, fascinante porque rica em versões e contradições, em via de mão única, impositiva, verdade absoluta e inquestionável, um exercício de chapabranquismo oficialesco, a derramar elogios sobre tais celebridades, como se fossem sujeitos supremos, perfeitos e infalíveis. Se for dessa maneira, uma história só de "coisas boas" (sempre nas avaliações deles, claro), vão adorar ver suas biografias publicadas. Não seria exercício jornalístico, mas estratégia de marketing. E, sim, a assessoria de Chico Buarque, quem te viu, quem te vê, confirmou à Folha de São Paulo que ele faz parte do time da truculência, acreditem.  

Tenho cá comigo, no entanto, que esse bloqueio ultrapassa essa esfera da discussão do "a quem pertence a história" para assumir ares ainda mais nefastos de "quanto custa essa história" - e, se as editoras pagarem bem aos cantores potencialmente biografados, talvez e quem sabe eles possam muito generosamente mudar de posição e, num átimo de respeito pelo interesse público, conceder imediata autorização para que suas vidas sejam contadas. Fazem valer a máxima do "pagando bem, por que não?". 

Na Folha de hoje, diz o sambista Wilson das Neves que "tudo o que se usa, paga", para completar: "Todo  mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?". E fulmina: "É até bom um dinheiro que entra na conta. Só estou esperando a minha vez". 

Não vou nem me alongar no mérito de discussão mais profunda, a escrachada mercantilização de vidas e trajetórias humanas que são públicas, histórias que, por direito, pertencem à humanidade. Para além dessa dimensão, o discurso do sambista mistura alhos com bugalhos para propositalmente confundir, numa torpe tentativa de seduzir e conquistar adeptos que, em sociedade cada vez mais pautada pela força de grana que ergue e destrói coisas belas (lembra, Caetano?), só pensam na bufunfa, nos bolsos cheios, no valor de troca, e não no valor de uso, para resgatar expressões marxistas. 

Vamos lá: quem faz a capa, quem diagrama, quem faz a revisão, quem fotografa e quem apura, pesquisa e escreve o texto de uma biografia está evidentemente sendo remunerado por trabalhos concretamente desenvolvidos. Numa sociedade capitalista, parece-me que a troca da força e capacidade de produção (braçal e intelectual) por remuneração justa e digna, ao menos em tese (chama-se salário, genericamente), é a única maneira de garantir sobrevivência. Agora, a dúvida: qual é o trabalho desenvolvido pelo possível biografado, a merecer remuneração? Qual o tempo socialmente gasto por ele diretamente nessa produção da obra? A história já está lá, é a vida dele, já aconteceu. Será apenas narrada e tornada pública. E quem vai correr para costurar as informações é exatamente o biógrafo. São pressupostos e ações completamente diferentes.

Percebam como esse raciocínio é reacionário e perigosíssimo: todos os dias, nas diferentes redações de jornais, emissoras de TV e de rádio e nos portais, pauteiros pautam, diagramadores diagramam, repórteres entrevistam e escrevem, editores editam. Trabalham todos com histórias que não são exatamente as deles, mas as dos outros. E são todos remunerados por todas essas distintas atividades. A seguir o raciocínio estapafúrdio de gente como Wilson das Neves (que não é voz isolada), todas as fontes entrevistadas para todas as matérias, nas mais diferentes editorias (Política, Economia, Internacional, Cultura, Cidades, Esportes), distintos veículos, precisariam ser também remuneradas. Afinal, o assunto do produto não ganha? E estaria assim definitivamente enterrada e inviabilizada a prática jornalística, ao menos aquela que pretende publicizar a melhor versão possível dos fatos, em nome dos direitos de cidadania e do fortalecimento da democracia. 

Mais triste é constatar que esse cerco à liberdade de expressão está sendo patrocinado por muitos daqueles que sofreram diretamente as agruras da repressão, nos terríveis anos de chumbo da ditadura militar. 

É proibido proibir. Vai passar. E, apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia.  

OUTUBRO 2013

(IN) DECISÃO

Da série "Meus namoros com a ficção..."


Frio de julho. Temperatura perto dos dez graus. Um vento cortante, daqueles de fazer doer os ossos, entrava cantando pela enorme janela da sala, escancarada. Ninguém se importava. Ernesto vestia a guerreira camisa amarela com listras verticais verdes de tantos outros mundiais, mangas curtas, número 8 nas costas. Estava toda amassada, surrada. Quase nem mais cabia nele. Era o uniforme da sorte. Nervoso, adrenalina fervendo no sangue, o rapaz suava em bicas e permanecia de joelhos, bem na frente da TV. Quase sem respirar, sentia o corpo todinho dolorido, como se tivesse sido pisoteado por oito elefantes africanos, cinco toneladas cada, um atrás do outro. Viu finalmente o árbitro erguer o braço. Chegava ao fim a prorrogação. A semi-final da Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.

O rapaz desaba no chão, olhar perdido, buscando o teto. Fica imóvel. Não pisca. Não mexe nem a pontinha da unha do dedo mindinho. Anita sente um aperto no coração. Já tinha visto aquela cena, algumas vezes. O semblante dela era tenso, testa enrugada. Mordeu os lábios. Balançou a cabeça de um lado a outro. Sem perceber, falou alto, quase gritando: “Ah, mas pode parar por aí. Nem em sonho invente de ter outro piripaque por conta de futebol. Já foi suficiente o do ano passado, quando precisamos voar para o pronto-socorro. Dessa vez não vou ajudar ninguém. Não conte comigo. Chega”. Ainda não tinha esquecido o susto, o surto, o pavor, a agonia, o namorado todo travado, sem nem conseguir falar, o médico do plantão dizendo “cuidado, infarto pode vir desse jeito”.

Sem prestar muita atenção ao que dizia a companheira, Ernesto olha o relógio. Seis e quarenta. Já escureceu. Ainda estatelado, ele começa a ouvir cadeiras sendo arrastadas na sala. Alguém levanta e acende as luzes. Sem dizer palavra, o pai, que passara a partida inteira andando em círculos, sempre no mesmo sentido, quase a fazer um buraco no chão do apartamento, faz o sinal da cruz, pega a imagem de Nossa Senhora de Fátima que estava no oratório, abraça-a fortemente, conversa baixinho com ela, dá vários beijos nela, faz mais um carinho e com ela sai para a área de serviço.

Como se tivesse recebido ordem do marido por telepatia, talvez um impulso elétrico conectado, ou ainda quem sabe tempestades cerebrais em sintonia, como nos experimentos do neurocientista Miguel Nicolelis, a mãe corre em desabalada carreira pelo corredor e se tranca no quarto. O irmão vai também, para o escritório. Em silêncio. Logo atrás, vão a irmã, o primo, a tia, o tio, o cunhado, a namorada do primo, o outro primo. Todos vão buscar abrigo em outros cantos da casa. As arquibancadas da sala, até então apinhadas, agitadíssimas, ficam abandonadas. Só restam ele e o irmão mais novo, encolhido e assustado num canto do sofá, olhos arregalados. Aguardam o início da disputa de pênaltis. Na lateral de campo, entre consultas e confabulações, os cobradores das penalidades estavam sendo definidos. Os jogadores recebiam aquelas massagens e aguinhas milagrosas que acabam com qualquer incômodo muscular.

Agora quase vazia, a sala parecia enorme. Os pratos e os talheres sujos de molho de macarrão do almoço ainda estavam espalhados pela mesa, que tinha sido encostada na parede, perto da porta de entrada. Tudo para não atrapalhar a visão do jogo. Já escolheram o gol onde os pênaltis serão cobrados?, Ernesto quis saber. Ninguém respondeu.  Começou a se mexer. Encolheu lentamente as pernas. Girou de lado. Apoiou-se sobre o braço direito. Fez força para levantar. São dez anos sofrendo com dores na coluna. O exame periódico de ressonância magnética feito no mês anterior diz que há acentuação da lordose lombar em decúbito, esboços osteofitários incipientes em alguns corpos vertebrais, leve abaulamento discal difuso L3-L4 que retifica o saco discal e sei lá quantas outras encrencas vertebrais complicadas. Ele chama todas essas letras e nomes de hérnias, protuberâncias e discos desgastados. Tem dor. Muita dor – que o impede inclusive de participar das peladas de final de semana com os amigos.

O ortopedista que também tinha casa de férias na cidade de Serra Negra, interior paulista, onde Ernesto passara boa parte da infância e da juventude, um tanto delas correndo atrás de bolas e comemorando os gols anotados, recomendou que o rapaz sempre se levante com cuidado, bem devagar. Flexiona os joelhos. Conta até três. Tudo bem. Apoia no sofá. Fica em pé. Estica. Não dá. Trava. Uma dor lancinante atravessa a coluna, da base da nuca à lombar. Fica tudo escuro. As pernas bambeiam. Quase cai. O irmão pula e oferece ajuda. Não precisa, está tudo bem, agradece. Respira fundo. Vai precisar ligar para o fisioterapeuta e marcar umas sessões extras de hidro, alongamentos na água. Talvez tenha de voltar a tomar anti-inflamatórios. Sugeriram ioga e acupuntura. Ele desconfia. Mas sabe que não é hora de pensar nisso. Respira fundo, mais uma vez. Passou. Ai. Acusou uma pontada, no lado esquerdo da lombar.

Consegue dar dois, três passos, lentamente. A sensação é que há uma agulha a espetar sua espinha, sem dó. O irmão já tinha novamente aumentado o som da televisão. Os jogadores com as camisas amarelas começam a se abraçar. Parecem dizer aqueles “é nois, ninguém tira, treinamos muito para chegar até aqui, não vamos perder agora, vamos fazer acontecer, fé em deus”. Ernesto não vê graça alguma nesses discursinhos motivacionais, acha todos uma grande bobagem. Se falatório ganhasse taça...

Na telinha, o técnico franzino, boné na cachola, madeixas brancas esvoaçantes, não para de beijar a medalhinha, sozinho, olhando o infinito. O velho Lobo diz a todo instante “vão ter que me engolir, vão ter que me engolir”. Mais atento, Ernesto consegue fazer a leitura labial. Começa a ouvir rojões que estouram nas ruas. Vira bicho. Sai correndo. Olha pela janela. Que merda! Parem com isso! Não ganhamos nada ainda! Isso dá um azar danado! Só comemorem depois que estivermos classificados! O irmão continua no cantinho do sofá. Agora rói as unhas, sem parar. Ameaça rir daquela ceninha patética, um maluco pendurado na janela, berrando sabe-se lá com quem, porque as ruas estavam desertas. Recebe em troca um olhar gelado, fulminante. Ernesto é uma bomba-relógio prestes a explodir.

O locutor abre a torneirinha de asneiras da boneca Emília. “É jogo para cardíaco, amigo. Pode treinar, mas pênalti é sempre loteria. Caixinha de surpresas. O que tiver de ser, será. De qualquer maneira, honramos essa camisa. Quem será que tem mais perna, mais coração? Vale a sua torcida. Haja coração!”. Cala a boca, Galvão! Sim, Ernesto acha o sujeito um falastrão, cretino fundamental. Mas acredita que o falatório do cara dá sorte. Nem pensar em mudar de canal. Os adversários com camisa laranja também ensaiam abraços, rodinhas, palavras de ordem, tapinhas nas costas. O rapaz solta o verbo novamente. Filhos da puta, viados, fregueses! Já esqueceram aquele balaço de falta, aquela bunda branca malabarista que saiu do caminho da bola na hora certinha? Entrou bem no cantinho. Vão perder de novo. Lembrou que estava em território doméstico paterno/materno, onde o código de ética e convivência dizia que não eram aceitos palavrões. Escapou, cacete, fazer o quê. Nem fez menção de pedir desculpas. Estava tenso demais. Movimentou-se para buscar assento ao lado do irmão. A coluna ainda estava levemente dolorida. Fez suave massagem. Sentou com a palma da mão esquerda a pressionar as costas. Procurou uma almofada.

Foi quando a ficha caiu. Numa espécie de viagem imagética, catapultado para outra realidade, todas as peças se encaixaram, tudo fez sentido. Ele finalmente entendeu as forças ocultas que tinham empurrado todos os outros familiares para os demais cômodos do apartamento – e segurado o irmão mais novo com ele na sala. Só os dois. Tinha sido exatamente assim na final da Copa anterior, quando a decisão acontecera também nos pênaltis, e os amarelos tinham levantado o caneco, depois de 24 anos de seca. Era isso! Quatro anos depois, bola na marca da cal de novo, claro que todos deveriam seguir o mesmo ritual. Óbvio. Natural. Obrigatório. Superstição coletiva. Irracionalidade racional – e vencedora. Sem que nada precisasse ter sido combinado. Não teve ordem, comando ou imposição. Cada um sabia o que precisava fazer. Achava lindo o futebol também por conta dessas mandingas. É isso, repetiu baixinho. Vai dar certo. Lembrou de cada um dos familiares reunidos para ver a semi, como se passasse a tropa em revista. Começou a contá-los – um, dois, três... catorze... quinze... Como quinze? Estancou. Ficou completamente pálido. Pôde sentir o sangue gelar.

Anita voltava da cozinha. Tinha ido beber água, comer um bolo de chocolate. Aproveitou e tomou um café. Foi o suficiente para deixar Ernesto profundamente irritado. Como é que alguém consegue pensar em comida em decisão de pênaltis em semi de Copa do Mundo? É como querer desafivelar o cinto de segurança e ir ao banheiro com o avião em pleno voo, coisa que a namorada também adorava fazer. E que raios afinal ela estava fazendo ali, no apartamento dos pais dele, naquele começo de noite? Ah, sim, ele tinha convidado. Mas éramos 14 na última final, lembrou. Refez as contas, um por um, usando os dedos para registrar cada um dos parentes. Catorze, confirmou. Éramos catorze. Agora somos quinze. A namorada era um elemento estranho. Fato inquestionável. Teve mau presságio. Sentiu leve tontura, tudo escureceu de repente, numa fração de segundo. Não vai dar certo. Não vai dar certo. Olhou angustiado para a companheira, acomodada tranquilamente num banquinho, ao lado do sofá. Ela ainda limpava as migalhas de bolo dos lábios. Colocou o guardanapo sujo na mesinha de canto. Cruzou as pernas. Sorriu para Ernesto. Ela não estava na sala há quatro anos, Ernesto repetia, sequer existia, eles não namoravam, nem se conheciam. Estava solteiro. Definitivamente, só podiam estar naquela arquibancada doméstica ele e o irmão mais novo. Se não fosse assim...

Ensaiou. Montou a fala na cabeça. Pensou em cada palavra. Tinha de ser rápido, certeiro. A disputa ia começar. Que merda, que merda, era horrível. Mas inevitável. Ela o conhecia, vá lá, ia entender. Já tinham passado poucas e boas por conta de futebol. A do ano passado tinha sido terrível, ele reconhece, derrota do time do coração na final do campeonato estadual, no último minuto, a fila que continuava. Lá se vão dez anos sem uma tacinha sequer. Não suportou o baque. Teve um colapso nervoso. Primeiro foram as mãos, que começaram a formigar. Não conseguia mexer os dedos, por mais força contrária que fizesse. Quanto mais tentava, mais doía. Os braços e as pernas travaram em seguida. Por fim, os músculos do rosto também foram paralisados. Tentava desesperadamente falar, mas a boca não obedecia. Saíam apenas sons desconexos. Tinha perdido o controle sobre o próprio corpo. Estava completamente inerte, entregue a uma dor que não conhecia. Teve medo. Virou a madrugada no hospital. Levou bronca do médico. Para tentar desanuviar os ânimos e manter o bom humor, saiu de lá dizendo que talvez a loucura apaixonada dele por futebol fosse mais um experimento da evolução natural darwiniana, a reforçar a seleção das espécies e forjar o Homo sapiens fanaticus futebolisticus.

Anita ficou furiosa, mas esteve o tempo todo ao lado dele. Ernesto prometeu que nunca mais aconteceria, que mudaria sua relação com o nobre esporte bretão. Durante um tempo, pouco mais de seis meses, fez terapia. Desistiu quando percebeu que o analista tinha se tornado mais um amigo com quem discutia a rodada futebolística do final de semana. Votavam nos gols mais bonitos, falavam sobre lances polêmicos. Era incontrolável, muito mais forte que ele. Para quem achava aquela relação com a pelota uma grande bobagem, ele respondia pedindo ajuda ao genial Nelson Rodrigues, que dizia que o “futebol é passional porque jogado pelo pobre ser humano”.

Verdade que, depois do trauma nervoso, Ernesto começa a ver os jogos com mais serenidade. A calmaria dura cinco minutos, no máximo - vai se deixando levar pela tensão, é tomado por ondas e impulsos, demônios que vivem nas entranhas e, quando percebe, já foi, já está novamente transtornado. Naquele começo de noite fria, semi-final de Copa do Mundo, o grau máximo de desequilíbrio fora novamente alcançado. Não tinha mais censura. Aproveitou o embalo. Precisava falar.

- Amor, é que... é... sabe... é que na final da última Copa, nos pênaltis, só estávamos eu e meu irmão aqui na sala.

- Sim, a gente não se conhecia.

- Pois é. Então. Seria bom se fosse assim de novo.

- Não entendi.

- Todo mundo já saiu daqui. Meu pai, minha mãe...

- Verdade.

- Só falta você. Acho que seria bom se pudesse sair também.

Quase travou. A última frase saiu de uma vez só, sem parar, como metralhadora, para não falhar, não empacar. O olhar de Anita foi fulminante.

- Não acredito.

- Nem eu. Mas veja bem, são só cinco minutinhos. Essa porra é semi-final de Copa do Mundo, não é joguinho contra o Bandeirante de Birigui. Não é qualquer porcaria. Você volta quando acabar. A gente comemora. Vai na minha, vai dar certo.

O irmão fazia cara de paisagem, constrangido.

Anita sabia que o namorado era um cara cheio de manias futebolísticas. Estavam juntos há quase três anos. Resignada, aceitava que ele usasse as mesmas roupas em jogos decisivos, que ficasse sempre na mesma posição e setor no estádio, que batesse três vezes no controle remoto quando a transmissão da partida fosse começar na televisão, que colocasse a mão na testa e dissesse “sai, sai, sai” quando era bola cruzada na área do time dele, que ficasse mudo desde manhã cedinho em dias de jogos importantes. Mas não entendia. Do fundo do coração, fazia força, muita força, mas não entendia. Detestava fazer o papel da vilã da história. Pensava, no entanto, se o namorado suportaria seguidas situações de enorme estresse – e, principalmente, ficava imaginando como seria quando tivessem filhos. Era com ele que ela queria casar, estava convicta. Tinha medo de ficar viúva precocemente.

A namorada sempre dizia para as amigas que Ernesto era das pessoas mais racionais que conhecera, metódico, ponderado, equilibrado, ateu convicto, a desconfiar de todas as espiritualidades. Jamais o tinha visto rezar, recorrer a apelos a anjos ou santos, nem nos momentos mais sofridos e dramáticos, quando sabia que o companheiro estava fragilizado. Ele dizia que as leis da natureza lhe bastavam. Não movia uma palha antes de pensar com cuidado sobre cada decisão que precisava tomar. Aos 30 anos, formado em História, o jovem estava concluindo o mestrado, uma pesquisa sobre a Guerrilha do Caparaó, que combateu a ditadura militar entre 1966-67, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Com futebol, e só com futebol, Ernesto ficava alterado.

Anita era justa, reconhecia que o namorado não se envolvia com torcidas organizadas, escapava delas, jamais se metia em brigas ou confusões, condenava qualquer forma de violência. Mas era outro sujeito quando a bola rolava. Ela ficava assustada com a transformação. Não era o universo dela. Gostava do jogo, de ir aos estádios, acompanhava os campeonatos, torcia – para o mesmo time de coração de Ernesto, ainda bem, acabava evitando outras discussões. Tinha sido no entanto criada a entender futebol como sinônimo de diversão, jamais de sofrimento. Achou que era hora de pedir truco. Resolveu bancar.

- Não vou sair desta sala. Melhor, se eu sair, não volto nunca mais.

Ernesto acusou o golpe. Entendeu perfeitamente a mensagem. Conhecia bem a namorada. Sabia que ela falava sério. Não iria recuar. Ele ficou gelado. Ferrou, pensou. Vamos perder. Já era. Sem chances. Não se deve cutucar as entidades do futebol. Não perdoam. São implacáveis. Não se brinca com tradição. Mas... fazer o quê? Sabia que não ia adiantar insistir, pedir de novo. Talvez cruzasse uma linha perigosa, sem volta. Amava Anita. Além do mais, na telinha da TV o primeiro batedor com camisa amarela já estava com a bola nas mãos, dirigindo-se lentamente ao local da cobrança. A namorada estava com cara de pouquíssimos amigos. Conformou-se.

Sentou no chão, mão direita grudada na poltrona. Exatamente como fizera quatro anos antes. Puxou o ar. Não soltou. O primeiro canarinho mandou a bola na lua. Filho de uma égua, imbecil! Acabou. Eu sabia. Ameaçou olhar para a companheira e gritar “eu avisei!”. Recuou. Teve plena noção do perigo, apesar das fortes emoções. Ainda restava uma nesga de equilíbrio, instinto de sobrevivência. Começou a sentir as mãos formigando, os músculos se contraindo. Sentiu medo dos espasmos. Esticou as pernas e os braços. Alongou. Agora não, por favor. Procurou controlar a respiração. Abria e fechava compassadamente a mão esquerda – a direita não soltava a poltrona, nem por decreto do presidente do Supremo Tribunal Federal.

Gol dos laranjas. Empatamos, mas já batemos um a mais. Mesmo assim, Ernesto empurra a poltrona e faz com que ela se choque três vezes e ritmadamente contra o sofá, comemorando. Fizera assim na última final. Era preciso repetir. Segundo gol dos laranjas. Também convertemos. Mais três batidas com a poltrona. Pressiona os dedos das mãos, três vezes, girando também os pés. Precisa soltá-los, aliviá-los. Não pode surtar. Não quer surtar. Anita olha discretamente para ele, a conferir se está bem. Parece preocupada. Os laranjas perdem a terceira cobrança – defesa espetacular do goleiro verde água! Vai que é sua, goleirão! Vai que é sua! Ernesto fica de joelhos, beija a camisa. Como há quatro anos. Volta rapidamente para a posição original. Tudo igual. Gol canarinho, empate laranja, mais um amarelo, outro laranja. Cinco batidas para cada lado. Quatro a quatro. Tudo igual. Vamos para as cobranças alternadas. Ninguém erra. Chegamos à décima rodada. Gol amarelinho. Poltrona jogada três vezes contra o sofá.

O cobrador adversário toma distância. Na sala, sem tirar a mão direita do pé da poltrona, Ernesto começa a falar bem baixinho “vai errar, vai errar, é agora, só pode ser, vai errar”. Dera certo da última vez com o cara da camisa azul e rabinho de cavalo. Ele olhou para a namorada. Sentiu o corpo estremecer, aquela sensação de “a morte está passando”, como diz a crendice popular. Era um sinal. Num átimo de segundo, seguindo os instintos e as vozes de entidades futebolísticas, já que não estava tudo exatamente como há quatro anos, resolveu entrar de vez naquela dança e inovar. Era a bola do jogo. Arriscou tudo. Correu para a cozinha. Ficou de joelhos, de frente para a geladeira. Fechou os olhos. Curvou-se para a frente. Encostou a testa no chão. Esticou os braços, na horizontal. Nunca tinha feito isso. Aguçou os ouvidos. Ficou esperando, controlando o pênalti apenas pelos sons.

Descobriria depois que a última batida laranja explodira no travessão. Levantou de um pulo só, com a festa que vinha das ruas. Disparou para a sala. Deu tempo de ver a poltrona sendo chutada com raiva pelo irmão. O móvel foi parar no meio da sala, pernas para cima. As portas dos quartos começaram a se abrir, freneticamente, numa sinfonia de chaves e maçanetas. O pai voltou correndo da área de serviço (quase derrubou a santa, cuidado, ainda tem a final). Ernesto imaginou ter visto alguém também escapando do banheiro, chorando. Palmas, urros, um primo se atirou no chão do corredor, chegou deslizando até a sala, de peixinho, tirando fina da quina da parede. Todos pularam sem dó em cima dele, pirâmide humana a amassá-lo. Não reclamou. Também não entendia nada do que gritavam. Ouviu baterias intermináveis de rojões. Buzinas começaram a tocar. Ainda não tinha vuvuzela. Alguém colocou o som da televisão no máximo. Identificou o Tema da Vitória. A sala tinha virado uma verdadeira feira livre. As arquibancadas – nada de padrão FIFA – estavam novamente lotadas. Exultantes.

Quando conseguiu recuperar os sentidos, se livrar dos abraços, camisa ainda mais ensopada, apertou a coluna que latejava. Correu para ver o replay, a cobrança perdida pelos laranjas, que classificou os amarelos para a final. As mãos não formigavam mais. Apalpou o rosto. Massageou as bochechas. É, estou bem. Tudo certo. Será que aprendi a controlar aquela porcaria?, pensou. A dúvida fez com que se lembrasse de Anita, que continuava sentada no banquinho, sozinha, olhando fixamente para a TV. Já tendo voltado do inferno, novamente em sua rotação normal, procedimento operacional padrão, Ernesto tinha plena consciência da bobagem que havia feito. Sem jeito, aquela clássica expressão de “preciso reparar a cretinice” escancarada no rosto com um baita sorriso amarelo, foi lentamente até a namorada, de joelhos. Você é pé quente! Dá sorte! Vamos ver juntos a final! E eu nem passei mal... Me abraça?

Ela só levantou a sobrancelha esquerda, sem alterar o tom de voz. Foi firme.

- Vamos conversar lá fora.

- É... Você viu, eu nem passei mal.

- Lá fora.

SETEMBRO 2013