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sexta-feira, 9 de maio de 2014

'ADAPTAR' MACHADO? QUE TEMERIDADE

Podem me chamar de purista, vetusto, ultrapassado, careta. Mas, sinceramente, penso ser um despropósito, um desserviço literário querer 'adaptar' as obras de Machado de Assis, como pretende fazer a escritora Patricia Secco, que conseguiu inclusive captar financiamento do Ministério da Cultura para fazer dos livros do Bruxo do Cosme Velho algo mais "palatável ao gosto dos jovens". Será possível que vamos ignorar por completo que um dos encantos dos livros está justamente na maneira (estrutura e linguagem) como foram escritos, a contemplar estilos e singularidades, traços de personalidade, e que um tanto desse fascínio será perdido se tais obras forem "pasteurizadas"? Desconsideraremos também que um livro é um registro de uma época, sinais de mundos que já existiram? Que falas, vozes e sotaques documentam contextos e costumes - e que tais marcas são histórica e literariamente fundamentais, insubstituíveis? Quem disse, afinal, que ler é tarefa sempre simples, 'super legal' (para usar jargão jovem da minha época), que não deve exigir persistência, paciência, dedicação, idas e vindas, brigas de compreensão, exercícios tortuosos, dúvidas, uso do dicionário, anotações, pesquisas, perguntas e mais perguntas? Não é assim, afinal, que também se constrói conhecimento, que se decanta repertório intelectual e que avançamos no difícil exercício de reforçar permanentemente nossa condição humana e civilizatória? Ah, sim, mas os jovens não leem... ofereçamos então a eles textos distorcidos e enviesados, simplórios, inventados (sim, porque não será mais Machado, que me desculpem) e então eles começarão a, tipo assim, irado, brisei, ler mais, véio? Que sem noção. Muito longe de elitismos, antes o Brasil estivesse mesmo disposto a massificar a leitura, que cada um de nossos lares tivesse 300, 400, mil livros (lidos, não só expostos como enfeites que embelezam o ambiente), quem dera cada cidade deste país tivesse ao menos uma biblioteca pública com acervo atualizado e fosse o local mais visitado do município, quem dera as escolas tivessem de fato programas permanentes de incentivo à leitura, conversas frequentes com autores. Esse 'adaptar', no entanto, é bem diferente, de outra natureza, se impõe como reducionismo, interpretação estapafúrdia e falsa promessa para atacar a nossa ampla, geral e irrestrita falta de hábito de leitura. Quer dizer então que basta 'simplificar', trocar palavrinhas e teremos então, num passe de mágica, radical transformação do estado das coisas e nossos jovens passarão imediatamente a ser fãs incontestes e apaixonados de Machado? Aos apressados, reforço, para evitar ruídos de comunicação: não estou demonizando adaptações, que significam necessariamente perdas e ganhos. De certo que há boas adaptações, merecedoras de vivas e elogios. Evidente também que o gari e o eletricista merecem poder ler Machado, como pretende Patricia Secco. Mais que democrático. Sensacional! O melhor dos mundos. Mas, atenção, aviso aos incautos: ao travarem contato com Machado reescrito e corrigido, inventado, eles estarão comprando gato por lebre, não estarão lendo Machado. Porque será outra obra, totalmente diferente, que achou por bem trocar 'sagacidade' por 'esperteza' - mesmo quando os sentidos das palavras não eram os mesmos. Pois é, estamos falando ainda de erros. Por fim, e depois do Machado, vamos 'adaptar' (reinventar) quem mais? José de Alencar? Lima Barreto? Guimarães Rosa? Victor Hugo? Dostoiévski? James Joyce? Como escreve João Cézar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de 'Machado de Assis: por uma poética da emulação', em texto publicado nesta sexta pelo jornal "O Estado de São Paulo", "nem toda 'adaptação é condenável. Contudo, o trabalho coordenado por Patricia Engel Secco parece ser completamente alheio à literatura do autor de 'O Alienista'". Por favor...

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