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domingo, 25 de maio de 2014

BERNARDO KUCINSKI ESCANCARA AS DURAS LEMBRANÇAS DA DITADURA



Pena que ele tenha começado a escrever ficção apenas aos 70 anos. Que bom que ele decidiu enveredar pelos caminhos da ficção, mesmo aos 70 anos. Melhor ainda que, até aqui, nos dois livros publicados, tenha escolhido como tema central de suas narrativas a ditadura civil-militar brasileira, página infeliz da nossa história e talvez cada vez mais desbotada da memória das nossas nova gerações, como já cantou o xará Chico (Buarque), com ligeira adaptação minha.

Em "K", romance originalmente escrito em 2011 e editado pela Expressão Popular, relançado em 2014 pela Cosac Naify, Bernardo Kucinski, que foi meu professor na graduação (dos bons, dos mais sérios e comprometidos, diga-se de passagem), conta a história de um pai e sua incansável busca por informações sobre a filha, militante política assassinada e desaparecida pela repressão. Nas idas e vindas desse seguir rastro infinito de informações desencontradas e picotadas, às vezes manipuladas, precisa lidar com a agonia da ausência, a angústia da espera, a esperança de um reencontro impossível e a dor de uma perda que não se materializa. É um texto visceral, a transbordar alma ferida, claramente inspirado em calvário vivido pelo próprio autor, que é irmão de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulos nos anos 1970 e vítima do regime de terror dos generais e empresários, até hoje na lista dos desaparecidos políticos durante o período, sem que os familiares saibam o que foi feito com o corpo dela. Ana Rosa chegou a ser demitida pelo IQ/USP por 'abandono de emprego', quando já se tinha notícias do assassinato dela, em mais uma triste e reveladora passagem da covardia e da complacência voluntárias que também são marcas dos anos de chumbo. A atrocidade foi desfeita recentemente, com a revogação simbólica da demissão da professora e a inauguração de uma escultura nas dependências do Instituto, como homenagem à educadora."Caro leitor, tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu", avisa o irmão escritor Bernardo, no início do romance.

"Você vai voltar pra mim e outros contos", também lançado recentemente pela Cosac Naify, é uma coletânea de 28 narrativas breves (foram 150 escritos entre 2010 e 2013, depois selecionados) que abordam, sob diversos olhares e perspectivas, as atrocidades da ditadura. Todos são muito bons, bem construídos, alguns mais irônicos, outros bem tensos, escapando da armadilha de recorrer a fórmulas prontas ou à repetição de estruturas e recusando o mais do mesmo. Destaco oito deles, bem brevemente, por mera questão de afinidades, sem recorrer a 'critérios científicos'. Memória emotiva. Foram os que mais me tocaram.

O conto que abre a coletânea, "A beata Vavá", narra a história de uma senhora profundamente religiosa que consegue salvar o filho dos porões da tortura depois de ter tido visões dele sangrando na cruz, como se fosse Jesus em seu martírio. "Sobre a natureza do homem" mostra um ex-companheiro de prisão tentando convencer a militante Maria Imaculata, que tinha sido barbaramente torturada, a entrar com pedido de indenização contra a União. Ela já não encontra mais motivos para viver. Mas o filho dela, quatro anos, diz que sabe o que vai fazer quando crescer. Com 90 anos, o velho Antunes decide fazer o enterro simbólico do filho, assassinado e desaparecido pela ditadura - esse é o enredo de "O velório". No caixão, estão um paletó e um par de sapatos de Roberto. Em "Joana", duas noites por semana, uma senhora sai às ruas, a conversar com gente que mora nas esquinas e debaixo de viadutos, à procura do marido Raimundo, metalúrgico e militante também desaparecido. Ela não acredita na morte. "Cadê o corpo? Não tem". Imagina que o ex-companheiro, desmemoriado, viva vagando como indigente. No conto que dá nome à obra - "Você vai voltar pra mim" -, um dos mais doloridos, demolidor, com apenas três páginas, acompanha-se de perto a expectativa de uma militante presa que talvez possa reencontrar a família. Mas não é bem assim. Não mesmo. "Pais e filhos" é também um dos mais emocionantes. No início, um pai pede ao filho militante que se entregue à polícia, garantindo que não há tortura no Brasil, que essa é uma invenção dos comunistas, prática comum apenas em Cuba. Ele muda de opinião depois do encontro com um tal delegado Fleury. Em "Recordações do casarão", dois amigos lembram as dores e as delícias vividas em um casarão que chegou a abrigar mais de cem companheiros, nos anos de chumbo, com os relatos dos amores e das tragédias envolvidas nesse tipo de experiência, incluindo o autoritarismo das organizações de esquerda (sim, o livro abre espaço generoso para a auto-crítica). Por fim, em "Tio André", o desafio é contar para uma criança de sete anos o que foi a ditadura e explicar que o tio do garoto ainda tinha muito medo de polícia justamente porque havia sido torturado quando estudante. Não vale mentir. A pergunta final é de travar a garganta.

A principal virtude de Kucinski, e muito provavelmente essa é uma herança dos tempos de jornalismo, é estar sempre preocupado com a contação de boas histórias, muito mais do que com exageradas e descabidas firulas técnicas ou deslocados arroubos experimentalistas de linguagem. Seu estilo é direto, seco, frases em geral curtas, muitos diálogos (são histórias 'conversadas'). Memórias e vivências são transportadas para o território livre e libertário da ficção. Os contos tratam de torturas, mortes, pau de arara, traições, choros, perdas, entes queridos que se foram. Mas falam também de afetos possíveis e de gigantescas camaradagens. São narrativas tensas, permeadas ao mesmo tempo por ironias e até mesmo, em alguns momentos, por levezas e respiros de lucidez humana que podem aparecer no gesto trivial de um personagem (uma risada ou abraço, por exemplo, um brinde aos velhos tempos numa mesa de bar) e que acabam ajudando a exorcizar tantos e tão pesados demônios.

"Se Bernardo precisou de quatro décadas para transformar o real em literatura, bastou este romance de estreia para virar o jornalista em escritor de ficção. E dos melhores, na apreciação de leitores que, assim como eu, costumam ler quase tudo o que se publica em matéria de memórias de vítimas da ditadura, desde meados dos anos 1970. A matéria literária de 'Você vai voltar pra mim e outros contos' é a mesma que inspirou a escrita de 'K': o encontro do militante político com o horror do sistema repressivo, oficial ou clandestino, criado para exterminar qualquer tentativa de oposição ao projeto da ditadura militar de 1964-85. A forma curta do conto permite ao autor novas liberdades em relação ao romance autobiográfico", escreve a psicanalista Maria Rita Kehl, também membro da Comissão Nacional da Verdade, no prefácio da coletânea de contos. O próprio Kucinski, ainda na apresentação da obra, destaca que "aos leitores mais jovens, não familiarizados com aqueles tempos, acredito que essas narrativas de cunho literário permitirão sentir um pouco a atmosfera de então, com nuances e complexidades que a simples história factual não conseguiria captar".

Os dois livros de Kucinski são lâminas afiadíssimas que, sem pedir licença, vão rasgando a pele, até atingir as entranhas do leitor. Dói. Sangra. Deixam o interlocutor atordoado. Mas são ferimentos pedagogicamente necessários. Porque inoculam as palavras e histórias que não nos deixam esquecer.

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