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domingo, 18 de maio de 2014

CONVERSAS FANTÁSTICAS COM PAULO LEMINSKI



Ele queria uma narrativa diferente. Achava que o amigo merecia uma biografia que escapasse do modelito tradicional, que não fosse quadradinha. Depois de um tanto de inquietudes, de elucubrações e ideias mirabolantes, e após sonhar algumas vezes com o poeta, decidiu que a história seria contada a partir do encontro fantástico entre duas entidades, personagens fortes, mesclando realidade e ficção, combinando a fidelidade ao conteúdo com a liberdade de reconstituição de cenas e espaços. Assim, as informações registradas no livro são verdadeiras - já os papos entre Domingos Pellegrini (o autor) e Paulo Leminski (o biografado) foram livremente inventados e não necessariamente aconteceram da forma como estão documentados na obra. "Biografia do Polaco já foi feita. Outro livro sobre ele tem de ser mistura de informação e romance, erudição e conversa, realidade e sonho, água e pedra, história e festa, uma lifestory!", avisa Pellegrini (que no livro é Pé Vermelho, por ter nascido em Londrina), que acaba de lançar Minhas lembranças de Leminski (na obra, Polaco, por conta das raízes polonesas), pela Geração Editorial.

As dúvidas e turbulências não incomodaram o autor apenas no momento de definir o tom e os recursos literários que desejava usar no livro. Ele recebeu a proposta para escrever a biografia do amigo Leminski em 2013. O trabalho seria acompanhado de perto e com lupa pela família do poeta. Como ficou combinado, a viúva e as filhas receberam os primeiros capítulos assim que ficaram prontos - mas jamais deram retorno ao autor, solenemente ignorado. Pellegrini estranhou o silêncio. Decidiu, no entanto, tocar em frente o projeto, à revelia das herdeiras.

Assumiu conscientemente o risco de ver o trabalho interrompido e a obra censurada, graças ao abominável artigo 20 do Código Civil brasileiro, que ainda exige a autorização prévia do biografado ou da família dele para que histórias de vida possam ser publicadas. A viúva de Leminski jamais questionou a veracidade das informações registradas no livro (como, aliás, é bastante comum nesse tipo de disputa). Alegava, no entanto, não apreciar o olhar que o biógrafo lança sobre o amigo poeta. Na avaliação da companheira, a imagem de Leminski teria sido duramente castigada pelo livro. Queria, provavelmente, mais uma daquelas historietas chapa-branca, recheada de elogios, com toda pompa e circunstância, bem ao gosto de personalidades como o cantor Roberto Carlos e dos demais participantes de um tal "Procure Saber" (movimento que já fez poeira, foi estilhaçado e ficou perdido em algum lugar do passado).

Por feliz coincidência, a biografia chegou às livrarias poucos dias antes de a Câmara dos Deputados aprovar modificações no Código Civil, eliminando a estapafúrdia imposição de censura prévia. A liberdade de expressão e a história do país agradecem. Editoras sentem-se agora aliviadas e muito mais à vontade para investir na publicação de biografias. Ao que tudo indica, e embora a proposta de mudança ainda precise passar pelo crivo do Senado, o Bom Senso Futebol Clube deverá também prevalecer no mundo da literatura.

Conceitualmente, aliás, os mais rigorosos poderão afirmar que a obra escrita por Pellegrini não é uma biografia - além dos já indicados flertes entre realidade e ficção, não há no livro exaustivo trabalho de apuração, pesquisa, consulta a arquivos, realização de entrevistas, como acontece em outros clássicos do gênero, como Getúlio, de Lira Neto, e Marighella, de Mario Magalhães. O que Minhas lembranças de Leminski traz é exatamente aquilo que está anunciado no título - são as memórias e as reminiscências, 'causos' contados por quem foi muito próximo do poeta curitibano, durante duas décadas. Pellegrini não cria falsas expectativas e entrega ao leitor o que promete desde o início - tornar um tanto mais conhecido o Leminski com quem ele conviveu, o libertário maldito que, no ano passado, com o lançamento da antologia Toda poesia (Companhia das Letras), um dos livros mais vendidos em 2013 (em algumas semanas, chegou a bater o petardo editorial Cinquenta tons de cinza), foi alçado repentina e surpreendentemente à condição de queridinho do público.

O Leminski que Pellegrini desnuda aos olhos e à alma do leitor é alguém em permanente conflito e tensão - um sujeito profundamente apaixonado pelas belezas da vida, debatedor nato, homem de inteligência e sensibilidade raras, raciocínio rápido, mas que não resiste ao vício da bebida e que acaba por ser trucidado pela dependência dos goles e copos virados, morrendo jovem, aos 44 anos, vítima do alcoolismo. Leminski bebia com facilidade ao menos duas garrafas de vodca por dia, sem contar as tantas garrafas de cerveja. No final da vida, já com vários órgãos dilacerados pela bebedeira, o álcool que entrava no organismo saía como sangue, que ele vomitava, em espasmos frequentes.

Na parte final da obra, há correspondências que Pellegrini trocou com Alice Ruiz, viúva do poeta, em que a companheira de Leminski afirma que "a ênfase no álcool, sua leitura de uma 'precariedade' de bens em nossa casa (você nunca ouviu falar em contracultura?), as observações exageradas sobre 'falta de banho', que corresponde a um período de maiores excessos, mas que foi superada, enfim, tudo isso serve para criar uma imagem bem negativa do Paulo em contraponto à sua, que aparece como O interlocutor por excelência e cheio de qualidades que supostamente 'faltavam' a ele".

Essa guerra de egos citada pela viúva é reconhecida pelo próprio Pellegrini - e talvez esse seja o escorregão da narrativa. Há, sim, passagens do texto em que o biógrafo tenta claramente ocupar um espaço que pertence ao biografado, agindo como uma espécie de grilo falante ou voz da consciência. Como a obra mistura ficção e realidade, resta a dúvida ao leitor - a relação dos dois aconteceu mesmo dessa maneira ou Pé Vermelho aproveitou a chance para dar uma valorizada no próprio passe? Não consigo responder.

O deslize de egocentrismo, no entanto, nem de longe 'justifica' a repugnante tentativa de censura prévia, o desejo de embargar a obra. Também não compromete, no conjunto, a qualidade do livro, importante e necessário para conhecer com mais detalhes o universo leminskiano - alguém que, como registra o autor nos trechos finais da biografia, "trouxe à poesia um frescor jovem, uma feição pop, uma aura cult, e, principalmente, uma atitude de vida, que vão continuar encantando os leitores de mente clara e coração aberto".  

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