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domingo, 8 de junho de 2014

A HUMANA TORTURA QUE MATOU FREI TITO

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A tortura não foi inventada por alienígenas - tampouco foi aperfeiçoada e colocada em prática, em diferentes períodos históricos, por entidades demoníacas, habitantes dos infernos. É uma legítima criação do Homo sapiens, que tem por objetivo primordial impor maus tratos e dores insuportáveis, de diferentes naturezas, aos semelhantes, para alcançar vantagens e informações que não seriam obtidas apenas com perguntas ou interrogatórios tradicionais. Tudo o que se quer é humilhar e quebrar o outro, física e emocionalmente. Representa o ápice da manifestação de sentimentos humanos brutalmente violentos, destrutivos. Para o torturador, não há limites. Não há regras. Não há freios morais.

Foram pessoas de carne e osso e dotadas de racionalidade, como o delegado Sergio Paranhos Fleury e o capitão Benone de Arruda Albernaz, que torturaram barbaramente o frei Tito de Alencar, quando o dominicano esteve preso no Departamento de Ordem Política e Social (Deops) e no Presídio Tiradentes, logo após o assassinato do guerrilheiro Carlos Marighella, em 4 de novembro de 1969. Tito fazia parte do esquema de apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização comandada pelo inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira. A biografia "Um homem torturado - Nos passos de frei Tito de Alencar", escrita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, tece a história dolorosa desse calvário de sevícias vivido pelo religioso, que só chegou ao fim com o suicídio. Atormentado, sem conseguir se livrar dos fantasmas dos torturadores, Tito enforcou-se, dependurando-se numa árvore perto de um convento na região de Lyon, na França, em 10 de agosto de 1974.

A obra combina pesquisa cuidadosa com narrativa que consegue recriar a atmosfera daquele período de terror, transportando um agoniado leitor para os diferentes momentos da vida de Tito - uma das histórias mais terríveis dos anos de chumbo. A militância política, o cotidiano no convento das Perdizes em São Paulo, a luta contra a ditadura, a organização do Congresso da União Nacional dos Estudantes em 1968, a participação na organização revolucionária liderada por Marighella, o sofrimento na prisão, a liberdade conquistada com o sequestro do embaixador suíço, a passagem pelo Chile e o exílio na França já foram tratados em outras obras, como "Batismo de sangue", do também dominicano Frei Beto. As autoras, porém, vão além, e oferecem detalhes preciosos sobre todos esses episódios. "O frei Tito que a gente descobriu é um jovem militante, fascinado por Filosofia, Ciências Sociais e pela Teologia da Libertação, e também por um Evangelho engajado, que veio para salvar o oprimido. Os religiosos que conviveram com o Tito no Brasil e na França nos abriram todos os arquivos, nos forneceram fitas cassete que ficaram guardadas por 40 anos", conta Leneide, em sonora disponível na revista eletrônica Giz, do Sindicato dos Professores de São Paulo.

Outro diferencial do livro está na sensibilidade e na profundidade com que as autoras tratam a questão da tortura, sem tabus ou pudores e em distintos momentos da história, até chegar ao capítulo final, dedicado a um depoimento do psiquiatra Jean-Claude Rolland, que cuidou de Tito na França. "Ao receber Tito na emergência, o médico via pela primeira vez uma vítima da tortura . Começava ali sua descoberta de um sofrimento atroz e do que ele chama de 'sintomas-testemunho'. Nem a faculdade de medicina nem sua prática de psiquiatra o tinham preparado para casos como o de Tito", escrevem as autoras. Sobre a tortura, Rolland afirma que "é uma prática que se desenvolve em bases que já existem. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro, e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição. Por exemplo, na Argélia, as pessoas que torturavam tinham feito estudos avançados, tinham uma moral, mas num dado momento, por razões diversas, ativaram o que estava latente. A tortura mostra que há no homem o prazer de destruir o outro".

Apesar de a tortura ser considerada crime imprescritível e de lesa-humanidade, em 2010, não custa lembrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os torturadores da ditadura brasileira não podem ser punidos. Estão protegidos pela Lei da Anistia. A humana tortura que matou frei Tito continua sendo praticada com frequência no ultrapassado e carcomido sistema carcerário nacional, em plena democracia, agora contra os prisioneiros comuns. Tão grave e muito triste é observar que, não raro, diante da tragédia, prevalece o estrondoso silêncio da sociedade (quando não, pior, vem à tona o apoio efusivo e pestilento). Preferimos nos livrar barbaramente do que consideramos a escória da espécie. E assim seguimos.


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Ouça o depoimento da jornalista Leneide Duarte-Plon (revista Giz, Sindicato dos Professores de São Paulo, abril de 2014).


domingo, 25 de maio de 2014

BERNARDO KUCINSKI ESCANCARA AS DURAS LEMBRANÇAS DA DITADURA



Pena que ele tenha começado a escrever ficção apenas aos 70 anos. Que bom que ele decidiu enveredar pelos caminhos da ficção, mesmo aos 70 anos. Melhor ainda que, até aqui, nos dois livros publicados, tenha escolhido como tema central de suas narrativas a ditadura civil-militar brasileira, página infeliz da nossa história e talvez cada vez mais desbotada da memória das nossas nova gerações, como já cantou o xará Chico (Buarque), com ligeira adaptação minha.

Em "K", romance originalmente escrito em 2011 e editado pela Expressão Popular, relançado em 2014 pela Cosac Naify, Bernardo Kucinski, que foi meu professor na graduação (dos bons, dos mais sérios e comprometidos, diga-se de passagem), conta a história de um pai e sua incansável busca por informações sobre a filha, militante política assassinada e desaparecida pela repressão. Nas idas e vindas desse seguir rastro infinito de informações desencontradas e picotadas, às vezes manipuladas, precisa lidar com a agonia da ausência, a angústia da espera, a esperança de um reencontro impossível e a dor de uma perda que não se materializa. É um texto visceral, a transbordar alma ferida, claramente inspirado em calvário vivido pelo próprio autor, que é irmão de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulos nos anos 1970 e vítima do regime de terror dos generais e empresários, até hoje na lista dos desaparecidos políticos durante o período, sem que os familiares saibam o que foi feito com o corpo dela. Ana Rosa chegou a ser demitida pelo IQ/USP por 'abandono de emprego', quando já se tinha notícias do assassinato dela, em mais uma triste e reveladora passagem da covardia e da complacência voluntárias que também são marcas dos anos de chumbo. A atrocidade foi desfeita recentemente, com a revogação simbólica da demissão da professora e a inauguração de uma escultura nas dependências do Instituto, como homenagem à educadora."Caro leitor, tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu", avisa o irmão escritor Bernardo, no início do romance.

"Você vai voltar pra mim e outros contos", também lançado recentemente pela Cosac Naify, é uma coletânea de 28 narrativas breves (foram 150 escritos entre 2010 e 2013, depois selecionados) que abordam, sob diversos olhares e perspectivas, as atrocidades da ditadura. Todos são muito bons, bem construídos, alguns mais irônicos, outros bem tensos, escapando da armadilha de recorrer a fórmulas prontas ou à repetição de estruturas e recusando o mais do mesmo. Destaco oito deles, bem brevemente, por mera questão de afinidades, sem recorrer a 'critérios científicos'. Memória emotiva. Foram os que mais me tocaram.

O conto que abre a coletânea, "A beata Vavá", narra a história de uma senhora profundamente religiosa que consegue salvar o filho dos porões da tortura depois de ter tido visões dele sangrando na cruz, como se fosse Jesus em seu martírio. "Sobre a natureza do homem" mostra um ex-companheiro de prisão tentando convencer a militante Maria Imaculata, que tinha sido barbaramente torturada, a entrar com pedido de indenização contra a União. Ela já não encontra mais motivos para viver. Mas o filho dela, quatro anos, diz que sabe o que vai fazer quando crescer. Com 90 anos, o velho Antunes decide fazer o enterro simbólico do filho, assassinado e desaparecido pela ditadura - esse é o enredo de "O velório". No caixão, estão um paletó e um par de sapatos de Roberto. Em "Joana", duas noites por semana, uma senhora sai às ruas, a conversar com gente que mora nas esquinas e debaixo de viadutos, à procura do marido Raimundo, metalúrgico e militante também desaparecido. Ela não acredita na morte. "Cadê o corpo? Não tem". Imagina que o ex-companheiro, desmemoriado, viva vagando como indigente. No conto que dá nome à obra - "Você vai voltar pra mim" -, um dos mais doloridos, demolidor, com apenas três páginas, acompanha-se de perto a expectativa de uma militante presa que talvez possa reencontrar a família. Mas não é bem assim. Não mesmo. "Pais e filhos" é também um dos mais emocionantes. No início, um pai pede ao filho militante que se entregue à polícia, garantindo que não há tortura no Brasil, que essa é uma invenção dos comunistas, prática comum apenas em Cuba. Ele muda de opinião depois do encontro com um tal delegado Fleury. Em "Recordações do casarão", dois amigos lembram as dores e as delícias vividas em um casarão que chegou a abrigar mais de cem companheiros, nos anos de chumbo, com os relatos dos amores e das tragédias envolvidas nesse tipo de experiência, incluindo o autoritarismo das organizações de esquerda (sim, o livro abre espaço generoso para a auto-crítica). Por fim, em "Tio André", o desafio é contar para uma criança de sete anos o que foi a ditadura e explicar que o tio do garoto ainda tinha muito medo de polícia justamente porque havia sido torturado quando estudante. Não vale mentir. A pergunta final é de travar a garganta.

A principal virtude de Kucinski, e muito provavelmente essa é uma herança dos tempos de jornalismo, é estar sempre preocupado com a contação de boas histórias, muito mais do que com exageradas e descabidas firulas técnicas ou deslocados arroubos experimentalistas de linguagem. Seu estilo é direto, seco, frases em geral curtas, muitos diálogos (são histórias 'conversadas'). Memórias e vivências são transportadas para o território livre e libertário da ficção. Os contos tratam de torturas, mortes, pau de arara, traições, choros, perdas, entes queridos que se foram. Mas falam também de afetos possíveis e de gigantescas camaradagens. São narrativas tensas, permeadas ao mesmo tempo por ironias e até mesmo, em alguns momentos, por levezas e respiros de lucidez humana que podem aparecer no gesto trivial de um personagem (uma risada ou abraço, por exemplo, um brinde aos velhos tempos numa mesa de bar) e que acabam ajudando a exorcizar tantos e tão pesados demônios.

"Se Bernardo precisou de quatro décadas para transformar o real em literatura, bastou este romance de estreia para virar o jornalista em escritor de ficção. E dos melhores, na apreciação de leitores que, assim como eu, costumam ler quase tudo o que se publica em matéria de memórias de vítimas da ditadura, desde meados dos anos 1970. A matéria literária de 'Você vai voltar pra mim e outros contos' é a mesma que inspirou a escrita de 'K': o encontro do militante político com o horror do sistema repressivo, oficial ou clandestino, criado para exterminar qualquer tentativa de oposição ao projeto da ditadura militar de 1964-85. A forma curta do conto permite ao autor novas liberdades em relação ao romance autobiográfico", escreve a psicanalista Maria Rita Kehl, também membro da Comissão Nacional da Verdade, no prefácio da coletânea de contos. O próprio Kucinski, ainda na apresentação da obra, destaca que "aos leitores mais jovens, não familiarizados com aqueles tempos, acredito que essas narrativas de cunho literário permitirão sentir um pouco a atmosfera de então, com nuances e complexidades que a simples história factual não conseguiria captar".

Os dois livros de Kucinski são lâminas afiadíssimas que, sem pedir licença, vão rasgando a pele, até atingir as entranhas do leitor. Dói. Sangra. Deixam o interlocutor atordoado. Mas são ferimentos pedagogicamente necessários. Porque inoculam as palavras e histórias que não nos deixam esquecer.

domingo, 18 de maio de 2014

CONVERSAS FANTÁSTICAS COM PAULO LEMINSKI



Ele queria uma narrativa diferente. Achava que o amigo merecia uma biografia que escapasse do modelito tradicional, que não fosse quadradinha. Depois de um tanto de inquietudes, de elucubrações e ideias mirabolantes, e após sonhar algumas vezes com o poeta, decidiu que a história seria contada a partir do encontro fantástico entre duas entidades, personagens fortes, mesclando realidade e ficção, combinando a fidelidade ao conteúdo com a liberdade de reconstituição de cenas e espaços. Assim, as informações registradas no livro são verdadeiras - já os papos entre Domingos Pellegrini (o autor) e Paulo Leminski (o biografado) foram livremente inventados e não necessariamente aconteceram da forma como estão documentados na obra. "Biografia do Polaco já foi feita. Outro livro sobre ele tem de ser mistura de informação e romance, erudição e conversa, realidade e sonho, água e pedra, história e festa, uma lifestory!", avisa Pellegrini (que no livro é Pé Vermelho, por ter nascido em Londrina), que acaba de lançar Minhas lembranças de Leminski (na obra, Polaco, por conta das raízes polonesas), pela Geração Editorial.

As dúvidas e turbulências não incomodaram o autor apenas no momento de definir o tom e os recursos literários que desejava usar no livro. Ele recebeu a proposta para escrever a biografia do amigo Leminski em 2013. O trabalho seria acompanhado de perto e com lupa pela família do poeta. Como ficou combinado, a viúva e as filhas receberam os primeiros capítulos assim que ficaram prontos - mas jamais deram retorno ao autor, solenemente ignorado. Pellegrini estranhou o silêncio. Decidiu, no entanto, tocar em frente o projeto, à revelia das herdeiras.

Assumiu conscientemente o risco de ver o trabalho interrompido e a obra censurada, graças ao abominável artigo 20 do Código Civil brasileiro, que ainda exige a autorização prévia do biografado ou da família dele para que histórias de vida possam ser publicadas. A viúva de Leminski jamais questionou a veracidade das informações registradas no livro (como, aliás, é bastante comum nesse tipo de disputa). Alegava, no entanto, não apreciar o olhar que o biógrafo lança sobre o amigo poeta. Na avaliação da companheira, a imagem de Leminski teria sido duramente castigada pelo livro. Queria, provavelmente, mais uma daquelas historietas chapa-branca, recheada de elogios, com toda pompa e circunstância, bem ao gosto de personalidades como o cantor Roberto Carlos e dos demais participantes de um tal "Procure Saber" (movimento que já fez poeira, foi estilhaçado e ficou perdido em algum lugar do passado).

Por feliz coincidência, a biografia chegou às livrarias poucos dias antes de a Câmara dos Deputados aprovar modificações no Código Civil, eliminando a estapafúrdia imposição de censura prévia. A liberdade de expressão e a história do país agradecem. Editoras sentem-se agora aliviadas e muito mais à vontade para investir na publicação de biografias. Ao que tudo indica, e embora a proposta de mudança ainda precise passar pelo crivo do Senado, o Bom Senso Futebol Clube deverá também prevalecer no mundo da literatura.

Conceitualmente, aliás, os mais rigorosos poderão afirmar que a obra escrita por Pellegrini não é uma biografia - além dos já indicados flertes entre realidade e ficção, não há no livro exaustivo trabalho de apuração, pesquisa, consulta a arquivos, realização de entrevistas, como acontece em outros clássicos do gênero, como Getúlio, de Lira Neto, e Marighella, de Mario Magalhães. O que Minhas lembranças de Leminski traz é exatamente aquilo que está anunciado no título - são as memórias e as reminiscências, 'causos' contados por quem foi muito próximo do poeta curitibano, durante duas décadas. Pellegrini não cria falsas expectativas e entrega ao leitor o que promete desde o início - tornar um tanto mais conhecido o Leminski com quem ele conviveu, o libertário maldito que, no ano passado, com o lançamento da antologia Toda poesia (Companhia das Letras), um dos livros mais vendidos em 2013 (em algumas semanas, chegou a bater o petardo editorial Cinquenta tons de cinza), foi alçado repentina e surpreendentemente à condição de queridinho do público.

O Leminski que Pellegrini desnuda aos olhos e à alma do leitor é alguém em permanente conflito e tensão - um sujeito profundamente apaixonado pelas belezas da vida, debatedor nato, homem de inteligência e sensibilidade raras, raciocínio rápido, mas que não resiste ao vício da bebida e que acaba por ser trucidado pela dependência dos goles e copos virados, morrendo jovem, aos 44 anos, vítima do alcoolismo. Leminski bebia com facilidade ao menos duas garrafas de vodca por dia, sem contar as tantas garrafas de cerveja. No final da vida, já com vários órgãos dilacerados pela bebedeira, o álcool que entrava no organismo saía como sangue, que ele vomitava, em espasmos frequentes.

Na parte final da obra, há correspondências que Pellegrini trocou com Alice Ruiz, viúva do poeta, em que a companheira de Leminski afirma que "a ênfase no álcool, sua leitura de uma 'precariedade' de bens em nossa casa (você nunca ouviu falar em contracultura?), as observações exageradas sobre 'falta de banho', que corresponde a um período de maiores excessos, mas que foi superada, enfim, tudo isso serve para criar uma imagem bem negativa do Paulo em contraponto à sua, que aparece como O interlocutor por excelência e cheio de qualidades que supostamente 'faltavam' a ele".

Essa guerra de egos citada pela viúva é reconhecida pelo próprio Pellegrini - e talvez esse seja o escorregão da narrativa. Há, sim, passagens do texto em que o biógrafo tenta claramente ocupar um espaço que pertence ao biografado, agindo como uma espécie de grilo falante ou voz da consciência. Como a obra mistura ficção e realidade, resta a dúvida ao leitor - a relação dos dois aconteceu mesmo dessa maneira ou Pé Vermelho aproveitou a chance para dar uma valorizada no próprio passe? Não consigo responder.

O deslize de egocentrismo, no entanto, nem de longe 'justifica' a repugnante tentativa de censura prévia, o desejo de embargar a obra. Também não compromete, no conjunto, a qualidade do livro, importante e necessário para conhecer com mais detalhes o universo leminskiano - alguém que, como registra o autor nos trechos finais da biografia, "trouxe à poesia um frescor jovem, uma feição pop, uma aura cult, e, principalmente, uma atitude de vida, que vão continuar encantando os leitores de mente clara e coração aberto".  

sexta-feira, 9 de maio de 2014

'ADAPTAR' MACHADO? QUE TEMERIDADE

Podem me chamar de purista, vetusto, ultrapassado, careta. Mas, sinceramente, penso ser um despropósito, um desserviço literário querer 'adaptar' as obras de Machado de Assis, como pretende fazer a escritora Patricia Secco, que conseguiu inclusive captar financiamento do Ministério da Cultura para fazer dos livros do Bruxo do Cosme Velho algo mais "palatável ao gosto dos jovens". Será possível que vamos ignorar por completo que um dos encantos dos livros está justamente na maneira (estrutura e linguagem) como foram escritos, a contemplar estilos e singularidades, traços de personalidade, e que um tanto desse fascínio será perdido se tais obras forem "pasteurizadas"? Desconsideraremos também que um livro é um registro de uma época, sinais de mundos que já existiram? Que falas, vozes e sotaques documentam contextos e costumes - e que tais marcas são histórica e literariamente fundamentais, insubstituíveis? Quem disse, afinal, que ler é tarefa sempre simples, 'super legal' (para usar jargão jovem da minha época), que não deve exigir persistência, paciência, dedicação, idas e vindas, brigas de compreensão, exercícios tortuosos, dúvidas, uso do dicionário, anotações, pesquisas, perguntas e mais perguntas? Não é assim, afinal, que também se constrói conhecimento, que se decanta repertório intelectual e que avançamos no difícil exercício de reforçar permanentemente nossa condição humana e civilizatória? Ah, sim, mas os jovens não leem... ofereçamos então a eles textos distorcidos e enviesados, simplórios, inventados (sim, porque não será mais Machado, que me desculpem) e então eles começarão a, tipo assim, irado, brisei, ler mais, véio? Que sem noção. Muito longe de elitismos, antes o Brasil estivesse mesmo disposto a massificar a leitura, que cada um de nossos lares tivesse 300, 400, mil livros (lidos, não só expostos como enfeites que embelezam o ambiente), quem dera cada cidade deste país tivesse ao menos uma biblioteca pública com acervo atualizado e fosse o local mais visitado do município, quem dera as escolas tivessem de fato programas permanentes de incentivo à leitura, conversas frequentes com autores. Esse 'adaptar', no entanto, é bem diferente, de outra natureza, se impõe como reducionismo, interpretação estapafúrdia e falsa promessa para atacar a nossa ampla, geral e irrestrita falta de hábito de leitura. Quer dizer então que basta 'simplificar', trocar palavrinhas e teremos então, num passe de mágica, radical transformação do estado das coisas e nossos jovens passarão imediatamente a ser fãs incontestes e apaixonados de Machado? Aos apressados, reforço, para evitar ruídos de comunicação: não estou demonizando adaptações, que significam necessariamente perdas e ganhos. De certo que há boas adaptações, merecedoras de vivas e elogios. Evidente também que o gari e o eletricista merecem poder ler Machado, como pretende Patricia Secco. Mais que democrático. Sensacional! O melhor dos mundos. Mas, atenção, aviso aos incautos: ao travarem contato com Machado reescrito e corrigido, inventado, eles estarão comprando gato por lebre, não estarão lendo Machado. Porque será outra obra, totalmente diferente, que achou por bem trocar 'sagacidade' por 'esperteza' - mesmo quando os sentidos das palavras não eram os mesmos. Pois é, estamos falando ainda de erros. Por fim, e depois do Machado, vamos 'adaptar' (reinventar) quem mais? José de Alencar? Lima Barreto? Guimarães Rosa? Victor Hugo? Dostoiévski? James Joyce? Como escreve João Cézar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de 'Machado de Assis: por uma poética da emulação', em texto publicado nesta sexta pelo jornal "O Estado de São Paulo", "nem toda 'adaptação é condenável. Contudo, o trabalho coordenado por Patricia Engel Secco parece ser completamente alheio à literatura do autor de 'O Alienista'". Por favor...

domingo, 4 de maio de 2014

MEMÓRIAS DE UMA INFÂNCIA VIVIDA NOS TEMPOS DE AUGUSTO PINOCHET



É possível que tivesse sido diferente? Fomos omissos? Aliás, quem éramos nós? O que fizemos? Como crescemos? Que marcas ficaram daquela época? Em "Formas de voltar para casa", lançado recentemente pela Cosac Naify, o chileno Alejandro Zambra narra a história de um também escritor que, ao escrever também um romance (e estou sendo propositalmente repetitivo para reforçar que essas semelhanças não são meras coincidências), tenta de alguma maneira, por meio da escrita de ficção, prestar contas, processar e fazer decantar os anos terríveis da ditadura chilena - que, de acordo com entidades de direitos humanos, assassinou e fez desaparecidas cerca de cinco mil pessoas.

Não é só o adulto, assim, quem fala. São sobretudo as memórias, o olhar e a voz de uma criança, filho de pais que, sugere a obra, não eram ditos militantes orgânicos, não fizeram diretamente parte das lutas, nem à esquerda, na resistência ao terror, nem apoiando o tirano Augusto Pinochet. As lembranças da infância, diluídas e reformatadas pelo tempo (e, como diria García Márquez, somos aquilo que lembramos), são muitas vezes marcadas pelo silêncio, pelo não saber, por normalidade na vida privada que é contaminada por clima de cotidiano mistério, no espaço público. Parece tudo bem. Mas a verdade é que não está tudo bem. E os pequenos não sabem ao certo as razões desse sentimento.

Há receios contidos, cuidados, avisos, alertas, segredos, desconfianças permanentes. Uma certa dureza embrutecida, porque os dias eram assim. Pinochet atrapalhava a diversão das crianças, quando invadia a programação televisiva. Recomendava-se não pronunciar publicamente a palavra 'comunismo'. Vizinhos se cumprimentavam, mas pouco se conheciam. Quase não se visitavam. Encontros entre amigos deviam acontecer em 'locais seguros'. É a constatação de que "levávamos a vida enquanto muitos desapareciam. Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guardanapos em forma de barcos, de aviões. Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer".

É a parte pelo todo, a saga de uma geração, a iluminar as trajetórias de muitos que cresceram em condições parecidas. Sem culpas, sem condenações ou julgamentos. A tendência, afinal, quando se fala das ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 70, é destacar relatos de jovens militantes. Justo. Necessário. Aqui, temos o recorte relevante e a presença fundamental e protagonista da infância, diferencial da narrativa. Vale lembrar, além disso, que parcelas significativas das sociedades eram formadas por não militantes - fosse por medo, por opção política, por desejo de proteger os filhos... Instinto de sobrevivência, vontade de perpetuação da espécie. Legítimas expectativas. O escritor (ou os escritores...) esforça-se justamente para compreender essas escolhas.

Não guarda rancor, não se arrepende, não se revolta contra os pais (embora em alguns momentos da narrativa seja possível captar uma tênue pontinha de inveja de quem fez diferente e enfrentou a ditadura). Ele procura deitar no digno divã das palavras para entender que, naquele momento duro e difícil, de tantas e tão cruéis perdas, talvez aquela fosse, para os pais dele, a participação (ou a ausência) possível. É um livro poético, delicadamente doloroso, suavemente permeado por inquietudes, a busca permanente de um sentido para a vida - agora em plena democracia, e às vésperas da eleição de Sebastián Piñera à Presidência da República.

As relações familiares são contraditórias, afetos e distanciamentos, quereres e repulsas, dúvidas não totalmente dissipadas. E, apesar de não demonizar os pais, o escritor, adulto, também não admite que sintam saudades dos tempos de Pinochet. "Os da Concertación são um bando de ladrões, diz. Não faria mal a esse país um pouco de ordem, diz. E finalmente vem a frase temida e esperada, o limite que não posso, que não vou tolerar: Pinochet foi um ditador e tudo mais, matou algumas pessoas, mas pelo menos naquele tempo havia ordem. Encaro-o nos olhos. Em que momento, penso, em que momento meu pai se converteu nisso? Ou sempre foi assim? Sempre foi assim? Penso nisso com força, com uma dramaticidade severa e dolorosa: sempre foi assim?".

É por isso que escreve. Para encontrar respostas. A escrita, para ele, tem a força profunda não só do reencontro e da redescoberta. É renascimento. Voltar para casa. Na apresentação da obra, Alan Pauls, escritor argentino, sugere que "voltar para casa é, portanto, voltar a esse Passado exemplar, despótico, fora do qual não parece haver vida possível, e nesse sentido é uma condenação. Mas é também voltar para contar, voltar a contar a vida dos outros - os protagonistas da História - para encontrar nela o lugar daquele que a conta, esse lugar onde algo assim como um eu possa nascer, e, com este eu, uma vida possível, e um futuro. Nesse sentido, voltar para casa seria o contrário de uma condenação. Mais que uma saída, inclusive: seria uma libertação".

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A COPA DO MUNDO SEM MAQUIAGENS

TEXTO DE ERYX PEREIRA




Faltando menos de dois meses para o início da Copa do Mundo, tive a oportunidade de ler, no formato digital, um livro cujo principal objetivo é mostrar os bastidores da preparação do Mundial de futebol, cujos gastos somados quase ultrapassam o que foi gasto na organização dos últimos campeonatos mundiais.

A obra é A Copa Como Ela É - A história de dez anos de preparação para a Copa de 2014, de Jamil Chade (Companhia das Letras). O lançamento se deu no começo de abril apenas em e-book, mas em breve, provavelmente após a Copa do Mundo, sairá a edição impressa e ampliada.

Fato é: a Copa do Mundo de futebol é o maior evento mundial. Isso não se discute. No entanto, após a leitura do livro, que, por sinal, é bem rápida, conclui-se de forma irrefutável: o Brasil perdeu uma oportunidade única de se transformar e de transformar suas cidades.

Chade é correspondente do Estadão na Europa. Durante dez anos, o jornalista acompanhou de perto as negociações que culminaram na escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014, bem como todas as polêmicas que se seguiram ao anúncio. Como correspondente do jornal na Suíça, Chade teve acesso privilegiado aos corredores da Fifa e às principais figuras que movimentaram o grande balcão de oportunidades que se tornou o Mundial. No livro, o jornalista expõe as tenebrosas transações entre CBF e governo, e mostra como duas entidades supostamente sem fins lucrativos tornaram a Copa de 2014 o evento mais rentável de suas histórias. Seguindo os rastros do dinheiro, Chade revela como políticos e cartolas se apropriaram de um torneio que, se não trouxe ao país o “legado” prometido durante a campanha, serviu para encher (muito) os bolsos de uns poucos na mesma medida que atacou (muito) os cofres públicos.

Partindo deste princípio, assim começa a história da Copa do Mundo mais cara da história. A Copa do Mundo das isenções tributárias e dos lucros de alguns poucos, das contas sem transparência, das “arenas” faraônicas e que, em boa parte, serão de pouquíssima utilidade tão logo a Copa termine, em 13 de julho de 2014.

O livro começa no hall de entrada de um hotel em Zurique. Chade relata que Ricardo Teixeira o teria chamado para conversar e relatado, em 2007: “essa Copa será feita sem um centavo do governo”. Hoje, segundo o que o autor apurou, o que se vê é que, de cada nove dólares gastos em estádios, oito foram emprestados, financiados ou pagos pelo Poder Público. Ela custará três vezes mais que o plano inicial de 2007. Ela custará o equivalente a duas Copas do Mundo. O Brasil gastou em estádios o equivalente ao que a África do Sul e a Alemanha gastaram em 2010 e 2006.

Para Chade, não há o que justifique isso. O autor questiona: “como explicar que uma cidade que tinha o Morumbi construiu um estádio novo? Como justificar que Brasília tem hoje o terceiro estádio mais caro do mundo e sem um time de futebol? Como justificar uma Copa em doze sedes, se a Fifa apenas pediu oito?

Na ótica do autor, “a Fifa usou o Brasil, e não foi o Brasil que usou a Copa”. E complementa que esse talvez tenha sido o maior erro dessa Copa. Referindo-se ao “legado” da Copa, tão defendido pelos organizadores e pelo Governo brasileiro, Chade cita um exemplo paradigmático: todos falam de Barcelona como uma referência em organização de um evento esportivo que mudou uma cidade. Mas, a sua obra nos esclarece, e quase ninguém sabe (inclusive eu) que nos Jogos Olímpicos de 1992, apenas 9% do orçamento de obras foi usado para as instalações esportivas. O restante foi para o aeroporto, avenidas, mobilidade urbana etc. Chade faz o contraponto: no Brasil, quase 40% dos gastos da Copa foram com estádios, nem sempre em locais adequados.

Trata-se, portanto, de precioso trabalho de pesquisa jornalística de quem, de antemão, esclarece, de forma taxativa, não se tratar de um livro contra o futebol, contra as Copas ou contra essa Copa de 2014. Mas, parafraseando o próprio autor, com a devida vênia, “uma tentativa de mostrar que precisamos ser uma espécie de torcedor-cidadão, que claro apoia a seleção, mas não sem saber o que de fato representou essa Copa”. Enfim, trata-se de um livro que foge da propaganda oficial da Copa e que conta os bastidores políticos e comerciais do maior evento hoje do mundo.


Para quem se interessar, boa leitura!

domingo, 20 de abril de 2014

A DIVERTIDA AVENTURA DE JOSÉ TRAJANO EM BUSCA DE SUA MÔNICA




Foi em 2009 que conheci a história, bem superficialmente, quando orientei um Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo que produziu um perfil de José Trajano. Aos alunos, ele contara a saga de um jovem repórter que se apaixonou por uma garota bem mais nova num baile de carnaval e, movido por esse amor do tamanho do mundo, daqueles que a gente acha que é único, nunca mais vai acontecer, cometeu até mesmo o desatino de encontrá-la, de surpresa, em um cruzeiro de navio pela Europa. Achei a trama sensacional, interessantíssima, fundamental para revelar a personalidade do perfilado. Sugeri aos orientandos que apurassem um pouco mais, para desnudar outros detalhes da aventura quixotesca. Trajano, no entanto, não abriu o coração além daquilo que já havia oferecido. Talvez ali, ainda que inconscientemente, outros planos narrativos já estivessem sendo gestados.

Pois é exatamente essa divertida história, agora com todas as suas peças e pormenores saborosos, que Trajano conta no livro "Procurando Mônica", recentemente lançado pela Editora Paralela. Foi em Rio das Flores, interior do Rio de Janeiro, cidade onde atualmente vivem aproximadamente oito mil pessoas e onde, quando adolescente, Trajano passava as férias com a família, que o futuro jornalista e ilustre torcedor do América carioca conheceu e se apaixonou por Mônica, seis anos mais nova que ele, entre máscaras e marchinhas carnavalescas que animavam o salão. Se fosse para usar um clichê, talvez ali tivesse nascido, muitos anos antes, uma música do Legião Urbana, com as devidas adaptações - "José e Mônica". Ela era uma menina e tinha 16 anos; ele, já repórter do caderno de Esportes do Jornal do Brasil, 22 anos. O final, porém, não seria tão feliz, e o casal ficaria bem distante de não poder viajar nas férias porque o filhinho estaria em recuperação. A garota, sem dó, esnobava todas as investidas do nobre pretendente, que sofria horrores e já não sabia mais o que fazer para acessar o coração gelado e peludo da amada.

Foi em uma das andanças por Rio das Flores que Trajano descobriu casualmente que a rapariga faria, no início de 1968, um cruzeiro de navio pela Europa, com duração de dois meses. Empresta daqui, socorre dali, consegue folga e horas extras de lá, amigos entram na parada para ajudar - e lá se foi o Trajano no mesmo navio, numa (quase) surpresa. Só o que não mudou mesmo foi a disposição de Mônica, que continuava irredutível, sem abrir a guarda nem dar chance alguma para o jovem repórter. Mais doído ainda, ela resolveu arrumar outro namorado em plena viagem, cavando mais fundo na alma e aumentando a agonia de Trajano, que ficou desolado (apesar de toda a ajuda e das dicas dos amigos dele, todos torcendo freneticamente pelo sucesso da empreitada amorosa).

O caso mal resolvido é permeado por outras deliciosas histórias - no livro, Trajano relembra o clima sombrio de angústia e pessimismo na Espanha e em Portugal, no final das ditaduras de Francisco Franco e de Antônio Salazar, respectivamente. Em Lisboa e Madrid, aliás, não faltaram acaloradas conversas de botequim com jornalistas locais sobre Eusébio, Puskás, Di Stéfano e Real Madrid, o segundo time mais fantástico do mundo, naquela época (o primeiro obviamente era o esquadrão mágico e insuperável do Santos, com Dorval, Mengálvio Coutinho, Pagão, Pelé e Pepe). Em Paris, ele "perambulava pelos bares de jazz do Quartier Latin, imaginando encontrar Miles Davis e Chet Baker. E tomava Pernoud com gelo para atravessar a madrugada. Para orgulho dos brasileiros, cartazes nas ruas anunciavam show da jovem cantora Elis Regina, acompanhada do Bossa Nova Trio". Londres veio em seguida. A atmosfera era privilegiada. "Os Beatles lançavam o álbum duplo Magical Mystery Tour e a música mais executada tinha tudo a ver com minha história: All you need is love".

Na belíssima cidade de Cortina d'Ampezzo, nos Alpes italianos, Trajano meteu-se em tremenda enrascada. Uma lambança, como ele mesmo diria. Solidário, decidiu entrar de vez na dança e na briga provocada por um amigo, que tinha se engraçado com a DJ que se apresentava num baile num clube local. Teve italiano que não gostou da ousadia. Cadeiras, mesas e garrafas voaram para todos os lados. Sopapos foram trocados, Os carabinieri apareceram para acabar com a bagunça. Trajano ficou preso por quase uma semana, foi julgado e solto, em liberdade condicional, com tempo ainda de aproveitar o final da excursão.

Mas os sentimentos já eram de entrega dos pontos, decepção, a sensação de que o jogo poderia ter trocentas prorrogações - e o gol não sairia. A paixão havia arrefecido. Mônica não tinha mesmo sequer sugerido o tradicional "OK, quem sabe, vamos tentar". Nada. Trajano já estava também preocupado com o cenário político no Brasil, o endurecimento do regime de terror, a ditadura escancarada representada pelo Ato Institucional 5, que oficializou a prática da tortura como política de Estado e garantiu a sistematização de uma máquina institucional de assassinatos e desaparecimentos nos porões da repressão.

Depois de desembarcar no Brasil, os dois seguiram suas vidas. Trajano casou duas vezes, teve três filhos. Tornou-se um dos jornalistas esportivos mais conhecidos do país. Está atualmente na ESPN/Brasil. Voltaria a ter notícias da paixão da juventude quando, conspiração do destino, anos depois do cruzeiro, fazia uma matéria para a Editora Três - e o fotógrafo que o acompanhava na pauta, além de ser filho de um colega de Trajano, tinha se casado com... Mônica! O jornalista voltaria ainda a ver a princesa encantada bem rapidamente, de relance, na redação da Tribuna da Imprensa e, de longe, na praia do Leblon. E só. Foram longos 35 anos sem ter notícias dela. "Soube que a Mônica teve três filhos em escadinha com o Luiz e que se separaram sete anos depois do casamento. (...) Quando decidi escrever as memórias, vasculhei sobre Mônica no Google. (...) No perfil do Facebook aberto ao público havia uma foto dela junto a uma plantação de tomates e uma foto menor, onde se esconde atrás de charmosos óculos escuros. Me surpreendeu ver Mônica de cabelos grisalhos, com o rosto parecido com quando pisou com ar desafiador no salão do 17 de Março".

Talvez porque o livro ainda carecesse de um final (feliz?), Trajano resolveu, aos 67 anos, ligar para Mônica. Quase quatro décadas depois, agia embalado ainda pelas lembranças dos carnavais de Rio das Flores, com frio adolescente na espinha e medo de tomar mais um fora. Conseguiu falar com ela. Foi bem recebido. O tempo normal da história termina aqui.

O resultado da prorrogação? O Trajano conta com detalhes no livro.

domingo, 6 de abril de 2014

ELIANE BRUM E DANIELA ARBEX CONVERSAM SOBRE HISTÓRIAS DE 'ANÔNIMOS'


São muitas as características e afinidades que unem Eliane Brum e Daniela Arbex. Jornalistas jovens e premiadíssimas, as duas combinam o rigor quase obsessivo (no bom sentido) de apuração com uma profunda e brilhante capacidade narrativa. São estupendas contadoras de histórias, sempre sintonizadas com a defesa dos direitos humanos e preocupadas a todo instante em garantir a fala aos chamados 'anônimos' da sociedade, personagens do nosso cotidiano que raramente encontram espaço para fazer reverberar suas vozes.

Em "O olho da rua", lançado em 2008 (editora Globo), uma coletânea de dez reportagens, Eliane escreve com maestria sobre temas tão distintos como a rotina das parteiras do Amapá, as angústias e esperanças de idosos que vivem num asilo e os 115 dias que passou ao lado de uma paciente terminal de câncer.

Em seu livro mais recente, "Holocausto brasileiro", publicado em 2013 (Geração Editorial), Daniela Arbex mergulha fundo na investigação sobre um manicômio que existiu na cidade de Barbacena, Minas Gerais, e onde morreram cerca de 60 mil pessoas, a maioria internada à força e sem recomendação médica, por conta de maus tratos, isolamentos forçados e choques elétricos, em mais uma horrenda constatação da nossa incapacidade de respeitar e de conviver com os diferentes.

Nas duas obras, é admirável a sensibilidade das autoras - emocionam e tocam fundo, chacoalham, fazem o leitor estremecer, pensar, sair incomodado e diferente de cada narrativa, sem em momento algum escorregar ou resvalar no sensacionalismo, no exagero, no espetáculo. É jornalismo literário, do melhor quilate.

Poder encontrar as duas juntas é um privilégio. No vídeo abaixo, lá estão elas: é a íntegra do encontro realizado no dia 1 de abril, no teatro Sergio Cardoso, em São Paulo, e que marcou o "esquenta" do VII Festival da Mantiqueira, que ocorre na cidade de São Francisco Xavier. As duas conversam sobre suas obras e carreiras, num delicioso banquete de ideias e boas histórias.

"Eu acho que o que a gente tenta fazer é mudar o olhar que se lança sobre as histórias e transformar a percepção das pessoas sobre as situações", diz Daniela. "A minha escolha sempre foi buscar os desacontecimentos, as histórias daqueles que estavam à margem das narrativas", completa Eliane.

A mediação foi do também jornalista Ivan Marsiglia.


     

domingo, 30 de março de 2014

UM EMPRESÁRIO SEM ESCRÚPULOS E O HORROR DA DITADURA BRASILEIRA



As prateleiras das livrarias estão sendo fartamente abastecidas por lançamentos e reedições que pretendem marcar a efeméride dos cinquenta anos do golpe civil-militar no Brasil. Referência na área desde 2002, quando foi originalmente publicada pela Companhia das Letras, a quadrilogia do jornalista Elio Gaspari (A ditadura envergonhada/A ditadura escancarada/A ditadura encurralada/A ditadura derrotada) volta repaginada, revista e atualizada, agora pela Intrínseca, e também em versão e-book, com vídeos e áudios complementares. No romance K. e na coletânea Você vai voltar pra mim e outros contos, ambos da CosacNaify, Bernardo Kucinski, mais um jornalista de primeira linha e que teve a irmã Ana Rosa assassinada pelo aparelho estatal de repressão, faz uso de ficção de máxima qualidade para lembrar os anos da repressão e marcar a agonia da busca incessante por informações que pudessem levar ao paradeiro da ossada da irmã desaparecida. Uma sólida e consistente análise histórica do período nos é oferecida em Ditadura e democracia no Brasil, da Zahar, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, atualmente professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e que foi também militante de grupos de resistência armada à ditadura. São todas leituras recomendadíssimas.

Minha sugestão mais específica para essa semana que marca o cinquentenário do golpe, no entanto, concentra-se no romance Exílio, lançado em 2012 por Marcela Tagliaferri, pela Motor/Imã Editorial. É uma obra perturbadora, daquelas capazes de arrancar sem dó da zona de conforto, que invade os poros e demora a sair da gente. Consegue reunir criatividade literária e precisão informativa para tratar daquilo que costumo chamar de o horripilante necessário, fatos históricos abomináveis, mas que não podem ser esquecidos ou ignorados - nesse caso, as entranhas fétidas da ditadura. A escritora organiza sua narrativa a partir das tramas que envolvem quatro personagens de um mesmo núcleo familiar. São a parte pelo todo, figuras emblemáticas e representativas de papeis e espaços sociais típicos do regime de terror que se instalou no Brasil em 1964.

O protagonista é um empresário carioca bem sucedido e reacionário, que despreza os pobres e sente asco daqueles que chama de gentalha do subúrbio, de quem não quer nem passar perto, nem sentir o cheiro. Abomina os modos vulgares e a falta de cultura dessa ralé. É colaborador entusiasmado do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e informante convicto do Serviço Nacional de Informações (SNI), anti-comunista ferrenho, fervoroso defensor da ditadura. Não mede esforços nem sente mínimo remorso ou arrependimento por caçar, torturar, trucidar e eliminar todos aqueles que considera inimigos da pátria. Tem orgulho imenso de fazer parte dessa máquina de extermínio. "O mais importante em uma sessão de tortura é manter a tensão, o poder está nas mãos do torturador, é o seu papel retirar do inimigo a verdade, e ela só vem com a perda total da dignidade. Ele é aprisionado pela dor, e o desespero da impotência fecha o ciclo quando caem finalmente e entregam todas as informações. A humilhação vem com a perda de poder, incapaz de sair daquele lugar, totalmente dominado como uma presa indefesa. O triunfo era dado quando gritavam a derrota. Estavam entregues e deles se retirava o maior desejo: a traição, a pura delação", ensina o velho.

Ele é pai de Silvia e foi o responsável por cuidar quase sozinho (a esposa morreu muito jovem) da educação da menina, desde que ela tinha quatro anos. Tem pela filha verdadeira obsessão - que assume ares de incontido desejo sexual. É a mulher que ele quer possuir. Há um momento no livro em que o velho contrata uma prostituta que se veste e se comporta como a filha, a reproduzir até mesmo cheiros e gestos. Silvia tem consciência da perversão. Sente medo, não consegue ficar sozinha com o pai - lembra sempre de uma ocasião em que chegou de uma noitada e de um abraço que acabou sendo mais do que um sinal de carinho paterno. Na ocasião, assustada, deu um jeito de se livrar do abraço e saiu correndo para o quarto, seu esconderijo, temendo coisas mais sérias. Silvia bem que se esforça e se movimenta para escapar das garras do tirano, adora conhecer e frequentar a boemia carioca, mas não consegue alcançar efetiva independência. Nos momentos de aperto, corre para pedir ajuda para o pai. No romance, a moça transita o tempo todo entre essa proteção e a subserviência que sufocam, a transgressão que agride e tira do sério o pai e e a inexorável necessidade de tê-lo por perto para desatar nós e solucionar dilemas que aparecem.

Bem jovem, ela se casa com Vicente, engenheiro de classe média que fez opção por uma vida simples e sem luxos ou ostentações - e a quem o pai da moça considera abominável, detestável, uma aberração, um fracassado que não merece constituir família com uma legítima representante das elites abastadas e bem formadas do Rio de Janeiro. Vicente não pertence ao andar de cima. E o empresário jamais aceitará a união. Cínico e ardiloso, transporta despudoradamente para as relações domésticas e familiares as mesmas táticas que usava nos porões da repressão para arrebentar os comunistas. Sem limites, o canalha manipulador envenena o genro com as mais torpes difamações sobre a própria filha. Acaba convencendo Vicente de que Silvia o traía. O rapaz, até então seguro e companheiro, entra em parafuso, profunda depressão, fica transtornado. Passa a beber e a tomar remédios, desbragadamente. Desconfiado agora das noitadas da esposa, que ele sempre havia incentivado, passa a agredi-la, física e moralmente. O casamento vira um inferno, para deleite do empresário. A pedido da filha, que não sabia como lidar com a crise conjugal, o pai entra mais uma vez em cena, posa de bonzinho e, no toque final, aciona seus contatos na repressão. Consegue internar Vicente num manicômio. Lá, ele vive quinze angustiantes anos de isolamento, maus tratos, pancadas e choques elétricos quase diários.

Heroicamente, talvez movido pela esperança desesperada de rever o filho, Vicente resiste e consegue sair do hospício ainda com domínio de sua racionalidade e dimensão humana - apesar das marcas, tormentos e lembranças que carregará para sempre. Livre do inferno, sua primeira iniciativa é procurar Silvia - o que ele quer mesmo é ter notícias do rebento Rafael. O jovem (e o pai não sabia) tinha se envolvido com o movimento estudantil e organizações clandestinas de combate à ditadura. Lúcido, sonhador, cheio de esperanças, a entregar-se às utopias da geração dos 60, Rafael era o único a desafiar a empáfia e a truculência do avô, a quem enfrentava de peito aberto, em discussões duríssimas, das quais Silvia procurava sempre se afastar. O jovem foi também o grilo falante que tentou abrir os olhos da mãe e chamar a atenção dela para o despotismo e a trajetória de violências do empresário, figura conhecidíssima no submundo asqueroso da ditadura. Não conseguiu ser ouvido a tempo.

Refinado e bem elaborado também na linguagem, Exílio é narrado pelos quatro personagens, alternadamente, em percepções que vão se completando e se confrontando. Além deles, há um narrador onisciente, em terceira pessoa, que dialoga e trava interessantes batalhas narrativas com cada um dos protagonistas. A história é conduzida pela combinação de frases curtas e parágrafos longos, que fazem o leitor respirar com dificuldade. Admito: não consigo ser tolerante com a intolerância. Não consigo respeitar quem defende torturas. Senti raiva, muita raiva do empresário manipulador e que encarna em toda a plenitude a violência e a tragédia da ditadura brasileira. "Exílio, enfim, é um livro que renova a literatura contemporânea ao apresentar personagens vivos e reais. E por nos levar à reflexão sobre que danada de modernidade foi construída nesta terra.  Exílio, assim, se faz como um protesto à crueldade, à irracionalidade de homens que justificam suas ações mais mesquinhas através da necessidade de defesa da pátria", escreve o jornalista e escritor Maurício Melo Júnior, no jornal Rascunho

O reencontro e o diálogo final entre Silvia e Vicente são tensos, doídos, acachapantes, viscerais. É confronto entre vida e morte. Prisão e liberdade. Passado e presente. Confiança e traição. Ditadura e democracia. Silêncio e choro. Simbolicamente, o casal talvez esteja naquelas páginas derradeiras costurando novo pacto de convivência civilizada e (re)elaborando as condições para começar a viver o luto. Essa mesma oportunidade que mesmo os governos democráticos insistem em negar a centenas de famílias no Brasil, que tiveram seus entes queridos assassinados e desaparecidos pela ditadura, e a quem continuam procurando até hoje. 

Até quando?

domingo, 23 de março de 2014

UMA COLEÇÃO IMPERDÍVEL PARA QUEM GOSTA DOS CONTOS

08.CapaAverrosPq_publicar_ebook     08.CapaPenelope_publicar_ebook    08.CapaLigia_publicar_ebook    08.CapaUmaNoMercadoPq_publicar_ebook 

08.CapaXodoPq_publicar_ebook    08.CapaNaoVouFalar_publicar_ebook    08.CapaMiguelSanchesNeto_publicar_ebook


Serei breve, porque esse é o espírito da coleção. 

A caminhada começou com Averrós, de José Luiz Passos, que narra um diálogo curto (poucos minutos) entre o protagonista e um morador de rua. A conversa é só aparentemente inocente - e o mendigo sabe bem mais do que se imagina. Passamos em seguida por Penélope, escrito por André de Leones, trama que reúne uma atriz e um produtor de filmes pornográficos. Ela cuida da avó, que tem problemas de memória. Ele acabou de sair da prisão. E eles têm, os dois, medo do futuro, de que tudo dê errado. De novo. No terceiro volume - Lígia -, Victor Heringer joga luzes sobre Alex, um sujeito de barba espessa e cabelo curto, responsável por cuidar do senhor Mendes, 88 anos. O idoso insiste em chamar seu benfeitor de Lígia, o nome da esposa, já falecida. Quando Mendes morre, Alex está vestindo a calcinha e o sutiã de Lígia. Sérgio Fantini promove, em Uma no mercado, o reencontro de Sávio com uma ex-namorada, num ônibus. A conversa avança para mãos no ombro, carinhos mais ousados, outros toques e um revival que quase acontece, não fosse por uma notícia inesperada. Chegamos a Xodó, de Marcelo Moutinho, que fala sobre Rodrigo, adolescente que gosta de se excitar sexualmente com a boneca da irmã - ela descobre, mas guarda o segredo. Primeiro pacto cúmplice de adultos. Não vou falar sobre isto, mas por exemplo, de Luci Collin, reúne recados de pessoas diferentes enviados a Fréderic. São bilhetes curtos, objetivos, que se juntam para formar um mosaico e dar o tom um tanto misterioso da narrativa. Finalmente, em Senhoras da noite, Miguel Sanches Neto trata de fotografias que não ficam boas. O equipamento é de primeira. A culpa é da luz. Até que o fotógrafo... 

Todas essas narrativas fazem parte da coleção "Formas Breves", lançada recentemente pela E-Galáxia. É uma das iniciativas literárias mais bacanas dos últimos tempos - toda semana, somos presenteados com um conto, sempre no formato digital, e por preço bastante acessível (apenas R$ 1,99). "Eu coordeno um festival de literatura só dedicado a contos e contistas, o Festival Nacional do Conto, e estudo há alguns anos os possíveis caminhos dos contos num mundo cada vez mais portátil: você tem internet, livros, filmes e músicas quando e onde quiser, com os dispositivos móveis. Então que tal uma coleção em que você pudesse, com menos de dois reais, o preço de um picolé, comprar um conto e ler em qualquer lugar? Este é o princípio da Formas Breves", explica Carlos Henrique Schroeder, coordenador da coleção. Ele garante que não importa se o autor é conhecido ou anônimo - a preocupação é com a qualidade da história. Em breve, farão parte do time escritoras como Carola Saavedra, Ivana Arruda Leite, Andrea del Fuego e Elvira Vigna. Autores internacionais também serão contemplados, "de classicões como Ambrose Bierce, Virgínia Woolf e Ruben Dário até contemporâneos como Sérgio Chejfec e Mariana Enriquez", completa Schroeder. E não faltará, ele promete, espaço para iniciantes. "Recebo em média três contos por dia, dou uma peneirada, olho tudo com muito critério".   

Em sintonia com o Nobel de Literatura, que no ano passado premiou a canadense Alice Munro, contista de mão cheia, "Formas Breves" faz um convite para um mergulho no universo de um gênero rico e apaixonante, mas que lamentavelmente não é valorizado como mereceria - ao contrário, sofre ainda com os narizes torcidos e o rótulo de 'primo pobre' do nobre romance. Erro grotesco. Como escreve Miguel Sanches Neto em artigo publicado no jornal 'Valor Econômico' da última sexta-feira, 21 de março, "o conto é linguagem que se espraia de forma tensionada. Cerca em que os arames estão muito esticados. Nada pode ficar frouxo nesses arranjos. Dizer cada coisa encaminhando o leitor para o centro pulsante da história. Um bom conto, portanto, exige muito mais controle do que o romance e a crônica. Poderíamos dizer que nele a língua se encontra bem-acabada tanto do ponto de vista plástico quanto estrutural".

Comecei a organizar minha biblioteca digital colecionando os contos de "Formas Breves". Agora, fico toda segunda-feira na expectativa de uma nova história. Vale a pena.


http://blog.e-galaxia.com.br/formas-breves/ 





domingo, 16 de março de 2014

O CABEÇÃO DE SANTO ANTÔNIO


Que atire a primeira pedra aquele que nunca esticou os olhos e fez malabarismos com o pescoço para tentar descobrir o que o passageiro do banco ao lado estava lendo, no metrô ou no ônibus lotados. Quem dera fôssemos os homens capazes de conquistar poderes sobrenaturais semelhantes aos de Mel Gibson no filme "Do que as mulheres gostam", para descobrir o que se passa nas cabeças das nossas caras metades, amigas, desconhecidas ilustres. A recíproca é verdadeira - as mulheres também adorariam ter acesso privilegiado e antecipado às mensagens e informações que se formam nos cérebros masculinos. Humanos são seres curiosos. A vontade de saber é marca da espécie; não raro, com todos os riscos envolvidos, esse desejo é tão intenso que ultrapassamos os limites da curiosidade e resvalamos (ou mergulhamos) na bisbilhotice, recolhendo e nos deliciando com segredos de alcovas, de confessionários, de banheiros femininos e masculinos, de salas secretas de reuniões, de depoimentos sigilosos. Ter informações privilegiadas, além de massagear o ego (eu tenho, você não), permite invariavelmente tirar vantagem de tal exclusividade.  

Protagonista de A cabeça do santo, primeiro romance dirigido ao público adulto escrito por Socorro Acioli, Samuel tem um dom capaz de causar pontinha de inveja em todos esses incorrigíveis curiosos e bisbilhoteiros. Ao visitar a cidade de Candeia, no sertão do Ceará, ele só encontra abrigo e moradia numa imensa cabeça oca de uma imagem de Santo Antônio, que está no chão justamente por ser muito pesada. Não havia guindaste que conseguisse transportá-la para o topo da estátua, que por sua vez reinava descabeçada no alto de um morro próximo. Dentro do cabeção, em horários fixos, o rapaz era capaz de ouvir todas as orações e os pedidos encaminhados pelas mulheres da cidade ao santo casamenteiro. "Eram exatamente cinco horas da manhã quando Samuel começou a acordar, atormentado, confuso. Ouvia vozes de mulheres, várias, falando ao mesmo tempo. Talvez fosse pesadelo, pareciam as mulheres do Horto. Sentou-se assustado, acordado, mas as vozes não paravam. Mais alto, mais forte, e, sim, era reza". 

Com a ajuda do adolescente Francisco (a relação nasce inicialmente de uma chantagem feita por Samuel, mas torna-se rapidamente sincera), o protagonista não demora a perceber que aquele dom especial garantia a ele a chance de alcançar fama e dinheiro. Ele faz uso dos segredos femininos a que tem acesso para aproximar e formar casais. Funciona. Visto como milagreiro, aquele que conversa e entende o que diz o santo, ele começa a ser reverenciado. Dá entrevistas. Vira celebridade midiática. A artimanha assume ares de negócio lucrativo. Samuel agenda consultas, vende conselhos, alavanca vendas de imagens do santo. Traz de volta vida pulsante a uma cidade em franca decadência, esquecida no mapa, quase fantasma. 

A primeira metade do livro é divertida, leitura mais leve, sem muitas tensões, a construir o cenário, apresentar os personagens e o universo mágico daquele sujeito que consegue falar com o santo, embora já ofereça também pistas sobre os conflitos que virão. Porque Samuel cutuca interesses de gente graúda na cidade. "Candeia renasceu. Voltou à vida pelas mãos das mulheres com sua fé, fazendo novena ao redor da cabeça do santo, acendendo velas, rezando dia e noite e esperando uma oportunidade de falar com o mensageiro. (...) Vestiu o capuz preso na parte de trás da roupa. Tirou a corda da cintura, enrolou na mão direita e invadiu a cabeça de Santo Antônio afastando a cortina improvisada. Pulou nas costas de Samuel como um sapo, ou um bicho cheio de tentáculos. Enrolou rapidamente a corda no pescoço de Samuel e foi feliz nesse golpe, porque o seu ponto fraco era exatamente o sufocamento, o desespero de não conseguir respirar". 

Samuel chegou a Candeia para cumprir promessa feita à mãe, que no leito de morte dela havia pedido ao filho que fosse à cidade para procurar o pai e a avó, que ele não conhecia. Fez Samuel também jurar ainda que iria acender velas para o padre Cícero, Santo Antônio e São Francisco. Para saldar sua dívida moral, ele vaga pelas estradas quase como mendigo durante quinze dias, enfrentando fome e calor insuportáveis; em Candeia, depois dos primeiros dias de fama e alegria, vai precisar lidar, na segunda metade da história, com mistérios que envolvem traições conjugais, ira de mulher traída, assassinato, cachorros ensandecidos, criança abandonada e negociatas conduzidas por políticos locais. No fim, será preso e, para não ser morto, abandonará a cidade. 

A cabeça do santo bebe com vigor na fonte do realismo mágico - a ideia do romance, aliás, nasceu depois de uma oficina que Socorro fez com Gabriel García Márquez, na Escuela Internacional de Cine y TV de Santo Antonio (de novo!) de Los Baños, em Cuba. "Apresentei o projeto da Cabeça do santo logo na primeira aula, em espanhol, e acho que nunca vivi nenhum dia depois disso sem lembrar dos comentários elogiosos do mestre. Ele não disfarçava a alegria de imaginar o protagonista descobrindo os segredos de amor das mulheres. Pediu que eu provasse ser verdadeira a existência de uma cabeça gigante no sertão do Ceará e eu mostrei a filmagem da minha visita à bizarra cabeça do santo. Foi intenso e divertido discutir meu projeto com García Márquez, mas não tivemos tempo de aprofundar muito o enredo", conta a autora, em texto publicado pelo Blog da Companhia das Letras. 

O romance coloca ainda o leitor em contato com a forte devoção religiosa, às vezes fanatismo, e com o coronelismo revisto e atualizado, à luz dos tempos atuais. São marcas não exclusivas da região, mas ainda muito presentes no cotidiano dos nordestinos. Os capítulos são curtos - e, se há uma ressalva a fazer sobre o livro, está justamente nessa narrativa rápida, expressa, sem muito tempo ou disposição para aprofundar algumas passagens da narrativa. É quase como um avião que voa baixo e oferece visão panorâmica das tramas, sem pousar com mais sossego nos aeroportos que se anunciam durante a trajetória. Exemplo - são muitas as vozes e os pedidos ouvidos diariamente por Samuel, mas apenas uma das preces atendidas e que termina em casamento por obra e graça da intervenção do protagonista merece destaque (a união de Madeinusa com o doutor Adriano). Senti falta de outras vozes, outros desenlaces, outras peripécias e armações. É, na minha percepção, o calcanhar de Aquiles da história.

Para Pedro Fernandes, professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), "A cabeça do santo faz fronteira com a literatura popular – o cordel, o causo, a fábula, as histórias orais – e a literatura erudita – o romance maravilhoso e o fantástico aperfeiçoado pela literatura latina de nomes como o próprio Gabriel García Márquez, o romance picaresco da literatura espanhola, o romance de 1930 da literatura brasileira e antecessores como o escritor José de Alencar. (...) Tudo, harmoniosamente bem aproveitado na construção estrutural da narrativa que se reveste do tom de seu tempo: a objetividade, a não linearidade do narrado, a fragmentação e o diálogo, ainda que tímido, com a linguagem poética". 

E só para aguçar um pouco mais a ancestral curiosidade que nos move - o mesmo cabeção do santo que é responsável por desgraçar a vida do pai de Samuel é também quem vai operar milagre e garantir a felicidade do protagonista. 

quarta-feira, 12 de março de 2014

UM MENDIGO CULTO E A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA



Um mendigo intelectual (ou vice-versa, um intelectual mendigo) vaga pelas ruas violentas de uma metrópole. Não se conforma - foi abandonado, há dez anos, pela mulher amada, que deixou para ele apenas um bilhete lacônico que dizia "ACABOU-SE. ADEUS". Emocionalmente estraçalhado, ao mesmo tempo esperançoso, sonha permanentemente com a volta dela. Imagina poder reencontrá-la em cada esquina, em cada quebrada, em cada viaduto ou beco da cidade que (não mais) o assusta. Atordoado, tenta manter quem sabe o tantinho de chão de humanidade que ainda lhe resta recorrendo e citando, de cor, adágios de Erasmo de Rotterdam (1466-1536), teólogo holandês considerado um dos expoentes do humanismo iluminista. É a partir dessas referências constantes ao pensador europeu que o protagonista estabelece derradeiro ponto de conexão com o que ainda lhe sobra da ideia de civilização. É também o movimento que garante  a ele momentos de lucidez (ou de delírio?), a estratégia que parece ter encontrado para enfrentar o submundo em que vive, gritantemente marcado pela exclusão, criminalidade, alcoolismo, brigas, mortes e abusos sexuais. 

Erasmo funciona, assim, como elemento de reforço da condição humana do mendigo, memória daquilo que ele já foi, a remeter ainda aos tempos gloriosos de convivência e paixão com a amada imortal. E é esse personagem perturbado pela frustração de um amor perdido quem nos conduz pelas 127 páginas de "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam", escrito por Evandro Affonso Ferreira e vencedor do Prêmio Jabuti de 2013, categoria romance. O trecho da obra destacado a seguir (página 35) é representativo da narrativa e revela como o autor, com extrema habilidade literária, consegue dar saltos harmônicos e costurar tramas aparentemente tão distantes. Evandro, aliás, já contou que a ideia do livro surgiu quando, ao andar pelo Centro de São Paulo, contou 95 mendigos, num espaço de quinze quadras. Ficou estarrecido.

"Ficarei todas as noites esperando-a na calçada do outro lado. Poderá ser amanhã; ou depois de amanhã; ou no último dia da mostra desse magistral diretor japonês. Vou encontrá-la. Poderá ser mês que vem - no momento em que ela estiver saindo de hospital qualquer. Poderá ser ano que vem - quando eu estiver mais uma vez, diante de uma vitrine, vendo por intermédio televisivo outra tragédia gigantesca. Colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do homem em todas as formas. Estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizem que tinha a convicção que seria possível pôr termo aos conflitos que dividem os homens e os povos, sem violência, por concessões mútuas. Veja: um dos três maltrapilhos alcoólatras caiu de bruços. A-hã: testa toda ensanguentada. Miseráveis".   

Sem proselitismos palanqueiros e escapando dos discursos panfletários - não precisa desses recursos -, investindo firme na descrição minuciosa desse mundo-cão em que está mergulhado, o protagonista nos tira de nossa zona de conforto e é mais um a lembrar que estamos perigosamente banalizando a violência e naturalizando as desigualdades. Aceitamos viver em uma megalópole doente, como se essa relação fosse normal, tranquila, "é o que temos para hoje". Somos capazes de andar pela Praça da Sé e olhar para as crianças ali abandonadas e perdidas sem manifestar nesga de indignação. Fazem parte do cenário urbano, a ele já foram incorporadas. Trafegamos aceleradamente pela cidade transformada em gigantesca autopista, sempre com os vidros escuros fechados, travados. Blindados. Não queremos ser abordados. Temos medo da nossa infância. Asco? Ojeriza? São cada vez mais comuns e corriqueiros os apelos por ações de limpeza social, a defender abertamente que essa escória que invadiu as ruas seja retirada do espaço público, custe o que custar, à força, se preciso for, para que a cidade possa de novo pertencer aos "cidadãos de bem". O horror. 

"É difícil a tarefa de viver - principalmente na rua. Amontoados uns sobre os outros nas praças empregamos com maus resultados qualquer traçado paisagístico. Somos o cancro da estética. Uma vez ouvi senhora idosa dizendo para outra: essa gente enfeia demais a cidade. Esqueceu-se de dizer que a tornamos mais fedentinosa também". Evandro joga esse submundo fedorento e indesejável no nosso colo e, sem fazer barulho, grita: "esses sacos de merda também pertencem a você, meu caro leitor. Estamos juntos. Ocupamos o mesmo espaço. Segregar não resolve. Ao contrário". Na loucura e em seus lúcidos delírios, lampejos de racionalidade, o mendigo intelectual nos faz olhar para um espelho que reflete a máxima estupidez humana.

A leitura não é fácil, exige paciência, persistência, não apenas porque cada parágrafo sugere um soco no estômago, e é preciso respirar antes de levantar e seguir em frente. A linguagem é marcada pela oralidade. E o monólogo com um interlocutor imaginário, com quem o protagonista supostamente "conversa", é também recheado de palavras herméticas, expressões difíceis, um vocabulário rebuscado, tenso, que nos faz avançar lentamente pelas páginas. Ao mesmo tempo, porque intensa, visceral, a história nos empurra a seguir até o final. 

É uma briga literária que vale muito a pena. Porque, afinal, "somos todos igualmente miseráveis". 

sábado, 8 de março de 2014

HOMO SAPIENS POLEGARIS

Da série "Meus namoros com a ficção..."


A temporada havia sido impecável - onze jogos, onze vitórias. Ataque mais positivo do torneio, três goleadas sensacionais aplicadas durante a competição, com direito ainda ao artilheiro do campeonato. Um dos tentos anotados, se possível fosse, verdadeira obra de arte, concorreria certamente ao prêmio Puskas de gol mais bonito do ano. Faltava a última, a derradeira. A decisão. Desejara desde sempre e ardentemente aquele momento, muitas noites sonhara com a finalíssima (teve alguns pesadelos também, é verdade), os times perfilados, o estádio cheio, a vibração das torcidas, bandeiras tremulando, as cores espalhafatosas dos uniformes contrastando com o verde vivo do gramado. Jogava como favorito.

O time do coração já estava em campo, esquadrão completinho, sem desfalques por cartões ou contusões. Tudo pronto. O árbitro fez sinal de que deveria ser respeitado um minuto de silêncio. Apitou. Valendo. O garoto respirou fundo. Não tirava os olhos da telinha. Nem piscava. Apenas mexia as mãozinhas nervosas. Freneticamente. Os dedões eram capazes de movimentos espantosos - tenho cá comigo, aliás, que depois da conquista do polegar opositor, longo e com maior capacidade de rotação, que ajudou a nos diferenciar dos antigos primatas, um dos próximos avanços evolutivos da nossa espécie será alcançar habilidades extraordinárias com esses nossos incríveis dedões. O máximo de movimentos num curtíssimo espaço de tempo, em áreas minúsculas. É só contemplar o que os garotos são hoje capazes de fazer com as teclas quase invisíveis dos celulares. Quase mágica. Talvez saia daí uma nova espécie mesmo, o Homo sapiens polegaris. Darwin ficaria orgulhoso. A seleção das espécies em marcha.

O jogo, como era de se esperar, tinha começado difícil, truncado. Amarrado no meio do campo, marcações fortes dos dois lados. Caramba, não estava impedido, já está difícil chegar na área e esse bandeirinha safado ainda marca o que não existiu. Não dá, é um pilantra. O tira-teima confirma a posição irregular. O garoto, tenso, coração aceleradíssimo, não se deu por vencido. Também, não marcou falta no lance anterior... Foi falta, ouviu? Falta. Merecia até amarelo. Está roubando. É um roubão! Conversava de igual para igual com a telinha, como se a máquina pudesse entender. Responder. Falava alto. Gritava. Mandava o comentarista calar a boca.Esse cara é um pé frio, ele abre a boca e dá azar. Sai tudo errado. É sempre assim. Tira ele daí! Sai logo! Fica quietinho, seu azarado.

A irmã mais velha suplicou por favor, fala um pouquinho mais baixo, não estou conseguindo me concentrar para fazer a lição de casa. Por favor. Saiu de cena rapidinho, indignada, praguejando. Tinha sido expulsa da sala. Impropérios impublicáveis. Você é pé fria também, some, vai para o seu quarto. Estou nervoso, não está vendo? Foi o tempo de se concentrar novamente e de ver encaixados, lindamente, três dribles em sequência do craque da camisa dez, que invadiu livre a área adversária e tocou de cavadinha para o fundo do gol. Deu até para ouvir o "puffffff" inconfundível das redes sendo estufadas.

As mãos finalmente dançaram soltas no ar. O moleque liberou um grito gutural, provavelmente muito parecido com aqueles que os homens das cavernas deviam mandar quando conseguiam dominar a caça, comemorando a conquista. Garantindo a sobrevivência do bando. Ah, moleque! Gol, golaço, chupa, golaço, chupa, chupa! Time do coração na frente. A irmã fez ainda última e desesperada tentativa. Mãe, assim não dá, esse garoto parece um louco. É só um jogo. Ouviu o berro que ele deu? Quase morri do coração. Não é possível, não é normal. Nem bem terminou de falar e ela, que imaginava que o limite já tinha sido atingido, ouviu, altos brados, palavrões que jamais imaginou existirem. Ficou vermelha - mas até tentou memorizar alguns, em caso de precisar usá-los com alguns amigos malas insuportáveis. O adversário tinha empatado.

Goleiro burro, frangueiro, olha o gol que você me toma. Meu deus, como é ruim! E esse zagueiro? É burro também! Burro demais! Não sabe jogar, não sabe nada de bola. E se acha, é um SeAchão. Vai tomar banho. Vai sair. Chega. Entra o reserva. E você que está entrando no lugar dele, vê se faz alguma coisa de útil! Se não fizer, vai sair também. Façam o favor de jogar bola! Vontade, ouviram! Raça! Não aguento mais vocês! A voz já saiu esganiçada, lábios tremendo. O garoto tentava engolir o choro e continuar em frente. A mãe achou que tinha dado. O barulho era infernal. Num pulo, chegou à sala. Acabou. Vou desligar essa porcaria. Não dá, filho. Que história é essa? Você vai ter um troço. À toa. Por nada. Não vale a pena. É só um jogo. Não pode ser assim. Por favor. O moleque nem ouviu, embriagado pelo que acontecia na telinha, preocupado em não errar.

O pai, que estava ouvindo os gritos mesmo com o chuveiro ligado no modo inverno e que acabara de sair do banho, fez menção de entrar na conversa. Chegou a dizerfilho... Recuou. Bateu a nostalgia. Lembrou que era exatamente assim, gritos e nervos à flor da pele, que ele disputava suas finais de campeonato no velho Atari, no ancestral Telejogo. Os polegares não precisavam ser tão hábeis, é verdade, os controles eram quase primitivos (botãozinho vermelho único), quando comparados às parafernálias atuais. As imagens, então, meu deus... em preto e branco, ou estourando cores nada nítidas, eram como pontinhos e pauzinhos rabiscados em paredes de cavernas. Não tinha canto de torcida, uniforme um ou dois, possibilidade de fazer substituições, arenas padrão FIFA, narradores, comentaristas, PES 2014, Nintendos Wiis... Eram, contudo, eventos únicos. Épicos do futebol virtual. Partidas tensas. Inesquecíveis. Os pais (avós) diziam que não era possível, que era só um jogo, que se continuasse daquele jeito iriam guardar o aparelho por um tempo. O pai sofria. Era mais forte que ele. A herança foi implacável. O filho sofre. É mais forte que ele.

O pai chega mais perto do moleque, a essa altura com o rosto quase mergulhado na tela cintilante e de alta definição do computador. As imagens são lindas, alucinantes. O garoto treme, elétrico. Está arfante, sem parar de gritar com seu time. É final de campeonato no vídeo-game doméstico. O velho sorri, discretamente. Cerra os punhos. Começa a torcer. Vai, filho. Bem baixinho. Confia nos polegares - e no título - do rebento.     

MARÇO 2014