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domingo, 4 de maio de 2014

MEMÓRIAS DE UMA INFÂNCIA VIVIDA NOS TEMPOS DE AUGUSTO PINOCHET



É possível que tivesse sido diferente? Fomos omissos? Aliás, quem éramos nós? O que fizemos? Como crescemos? Que marcas ficaram daquela época? Em "Formas de voltar para casa", lançado recentemente pela Cosac Naify, o chileno Alejandro Zambra narra a história de um também escritor que, ao escrever também um romance (e estou sendo propositalmente repetitivo para reforçar que essas semelhanças não são meras coincidências), tenta de alguma maneira, por meio da escrita de ficção, prestar contas, processar e fazer decantar os anos terríveis da ditadura chilena - que, de acordo com entidades de direitos humanos, assassinou e fez desaparecidas cerca de cinco mil pessoas.

Não é só o adulto, assim, quem fala. São sobretudo as memórias, o olhar e a voz de uma criança, filho de pais que, sugere a obra, não eram ditos militantes orgânicos, não fizeram diretamente parte das lutas, nem à esquerda, na resistência ao terror, nem apoiando o tirano Augusto Pinochet. As lembranças da infância, diluídas e reformatadas pelo tempo (e, como diria García Márquez, somos aquilo que lembramos), são muitas vezes marcadas pelo silêncio, pelo não saber, por normalidade na vida privada que é contaminada por clima de cotidiano mistério, no espaço público. Parece tudo bem. Mas a verdade é que não está tudo bem. E os pequenos não sabem ao certo as razões desse sentimento.

Há receios contidos, cuidados, avisos, alertas, segredos, desconfianças permanentes. Uma certa dureza embrutecida, porque os dias eram assim. Pinochet atrapalhava a diversão das crianças, quando invadia a programação televisiva. Recomendava-se não pronunciar publicamente a palavra 'comunismo'. Vizinhos se cumprimentavam, mas pouco se conheciam. Quase não se visitavam. Encontros entre amigos deviam acontecer em 'locais seguros'. É a constatação de que "levávamos a vida enquanto muitos desapareciam. Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guardanapos em forma de barcos, de aviões. Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer".

É a parte pelo todo, a saga de uma geração, a iluminar as trajetórias de muitos que cresceram em condições parecidas. Sem culpas, sem condenações ou julgamentos. A tendência, afinal, quando se fala das ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 70, é destacar relatos de jovens militantes. Justo. Necessário. Aqui, temos o recorte relevante e a presença fundamental e protagonista da infância, diferencial da narrativa. Vale lembrar, além disso, que parcelas significativas das sociedades eram formadas por não militantes - fosse por medo, por opção política, por desejo de proteger os filhos... Instinto de sobrevivência, vontade de perpetuação da espécie. Legítimas expectativas. O escritor (ou os escritores...) esforça-se justamente para compreender essas escolhas.

Não guarda rancor, não se arrepende, não se revolta contra os pais (embora em alguns momentos da narrativa seja possível captar uma tênue pontinha de inveja de quem fez diferente e enfrentou a ditadura). Ele procura deitar no digno divã das palavras para entender que, naquele momento duro e difícil, de tantas e tão cruéis perdas, talvez aquela fosse, para os pais dele, a participação (ou a ausência) possível. É um livro poético, delicadamente doloroso, suavemente permeado por inquietudes, a busca permanente de um sentido para a vida - agora em plena democracia, e às vésperas da eleição de Sebastián Piñera à Presidência da República.

As relações familiares são contraditórias, afetos e distanciamentos, quereres e repulsas, dúvidas não totalmente dissipadas. E, apesar de não demonizar os pais, o escritor, adulto, também não admite que sintam saudades dos tempos de Pinochet. "Os da Concertación são um bando de ladrões, diz. Não faria mal a esse país um pouco de ordem, diz. E finalmente vem a frase temida e esperada, o limite que não posso, que não vou tolerar: Pinochet foi um ditador e tudo mais, matou algumas pessoas, mas pelo menos naquele tempo havia ordem. Encaro-o nos olhos. Em que momento, penso, em que momento meu pai se converteu nisso? Ou sempre foi assim? Sempre foi assim? Penso nisso com força, com uma dramaticidade severa e dolorosa: sempre foi assim?".

É por isso que escreve. Para encontrar respostas. A escrita, para ele, tem a força profunda não só do reencontro e da redescoberta. É renascimento. Voltar para casa. Na apresentação da obra, Alan Pauls, escritor argentino, sugere que "voltar para casa é, portanto, voltar a esse Passado exemplar, despótico, fora do qual não parece haver vida possível, e nesse sentido é uma condenação. Mas é também voltar para contar, voltar a contar a vida dos outros - os protagonistas da História - para encontrar nela o lugar daquele que a conta, esse lugar onde algo assim como um eu possa nascer, e, com este eu, uma vida possível, e um futuro. Nesse sentido, voltar para casa seria o contrário de uma condenação. Mais que uma saída, inclusive: seria uma libertação".

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