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sábado, 8 de março de 2014

LEMOS POUCO? POIS É. A IMAGEM VENCEU

Tatiana Belinky, escritora de livros infantis e primeira roteirista do "Sítio do Picapau Amarelo", costuma dizer em suas entrevistas que as crianças devem ser desde muito cedo convidadas a participar do encantador mundo da leitura. Sugere que os pais não apenas contem histórias para seus filhos, tarefa fundamental, mas que deixem os livros soltos e ao alcance dos pequenos, em prateleiras bem baixas e estrategicamente espalhadas pela casa, para que a criança possa parar, escolher sua obra preferida, tocar e trocar o livro, virá-lo de cabeça para baixo. É ali que eles vão se deparar com suas princesas, príncipes, heróis, monstros, medos, agonias, desejos, vitórias e frustrações.

Não importa, sugere Tatiana, se o jovem leitor vai contar sua história do fim para o começo, se vai começar pelo meio, se vai pular páginas, se vai prestar mais atenção às figuras, se vai costurar a narrativa de forma diferente em relação ao projeto original idealizado pelo autor. Para ela, leitores se formam sem imposições, a partir do contato permanente e natural com as histórias, levando em consideração o exemplo inspirador e motivador, o espelho dos pais que valorizam os livros, estimulam a criatividade, facilitam o acesso e valorizam o hábito e o mergulho livre no mundo da fantasia, fomentando imaginação que viaja solta, sem amarras.

Esse, no entanto, parece ainda não ser o caminho percorrido por parcela representativa dos brasileiros, infelizmente. A pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", desenvolvida e divulgada em 2008 pelo Instituto Pró-Livro (entidade sustentada pela Câmara Brasileira do Livro, Sindicato Nacional de Editores de Livros e Associação Brasileira de Editores de Livros) revela que o país tem cerca de 95 milhões de leitores (pessoas que declararam ter lido pelo menos um livro nos três meses anteriores à realização do levantamento), contra 77 milhões de não leitores. Situação crítica de quase empate. Em média, cada brasileiro lê quatro livros por ano (estima-se que na Argentina sejam 12 livros, ou seja, três vezes mais) e compra apenas 1,2 livro anualmente.


No Brasil, leitura não é relevante
"Não dá para negar que tem havido avanços importantes nos últimos anos e que os brasileiros estão lendo mais. Mas o país está longe de ser uma nação de cidadãos leitores e há muito chão pela frente até que se chegue lá. A má notícia é que o Brasil, apesar dos recentes avanços, ainda não reconhece a questão do livro e da leitura como algo realmente importante e estratégico para seu presente e, sobretudo, para construir outro tipo de futuro", escreve Galeno Amorim, diretor do Observatório do Livro e da Leitura, na introdução de "Retratos da Leitura no Brasil", obra que oferece os detalhes da pesquisa citada, além de reflexões produzidas por diversos especialistas no assunto.

Ainda de acordo com o levantamento, 49% dos leitores dizem que o hábito foi influenciado pela mãe; para 33%, a grande incentivadora foi a professora. Sobre as motivações, 63% afirmam ler por prazer, gosto ou necessidade espontânea; 53%, por atualizações culturais e conhecimentos gerais e 43% lêem por conta de exigência escolar ou acadêmica (eram permitidas respostas com até três opções). O tempo gasto com a leitura distribui-se da seguinte forma: 2% investem mais de dez horas por semana na atividade; 10% dedicam de quatro a dez horas semanais; 51% passam de 1 a 3 horas semanais lendo; e 34% lêem menos de uma hora por semana. Ou seja: 85% investem menos de 3 horas por semana em leituras. Três em cada quatro brasileiros não frequentam bibliotecas. No grupo dos não leitores, 29% dizem não ter o hábito por falta de tempo; 28% não são alfabetizados; 27% não gostam de ler e 7% afirmam não ter dinheiro para investir em livros.


Não é difícil decodificar os recados transmitidos pelos números e perceber que há uma infinidade de obstáculos à leitura no Brasil: preços dos livros, falta de bibliotecas, analfabetismo, equívocos de distribuição, dificuldades em compreender o que se lê, aversão que se cria quando a tarefa é obrigatória e imposta, políticas públicas não adequadas, não incentivo das famílias. "Tanto é que 85% dos não leitores nunca foram presentados com livros na infância, enquanto no universo dos considerados leitores, 51% receberam livros como presente. Nos lares dos não leitores, 63% dos informantes nunca viram os pais lendo", avalia Lucília Helena do Carmo Garcez, professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), em artigo que faz parte do livro "Retratos da Leitura no Brasil". A pesquisadora completa o raciocínio: "como a leitura faz variadas solicitações simultâneas ao cérebro, é necessário desenvolver, consolidar e automatizar habilidades sofisticadas para pertencer ao mundo dos que lêem com naturalidade e rapidez". E essas competências nem sempre estão presentes no universo intelectual do brasileiro.


A supremacia da imagem
Todas essas variáveis são extremamente importantes e precisam ser consideradas com seriedade por educadores, especialistas, estudiosos do assunto e por formuladores de políticas públicas de incentivo à leitura. Mas penso ser necessário agregar mais um fator a esta lista, de natureza mais filosófica e diretamente ligado ao momento histórico que vivemos e ao atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista. Quando pensamos nos recursos que mobilizamos para construir repertório de conhecimentos e na concorrência estabelecida entre palavras e narrativas imagéticas, é preciso admitir que o segundo grupo prevalece, cada vez mais. A leitura perdeu seu trono especial de admiração e reverência, teve seu espaço social de reconhecimento bastante abalado e minimizado. Foi desbancada pela imagem. Tornou-se artigo de segunda categoria, a quem recorremos "quando e se temos tempo". 

Dois exemplos emblemáticos do que afirmo: em sala de aula, quando o professor sugere uma obra literária, invariavelmente recebe como réplica a pergunta "mas já tem em DVD?". Outra: o jovem que liga para o colega na sexta-feira à noite para convidá-lo para a balada será capaz de compreender perfeitamente e com muita tranquilidade se o interlocutor responder "OK, vamos, mas passe por aqui depois do último capítulo da novela". No entanto, ficará muito bravo e inconformado, achará mesmo um absurdo e despropósito se, de outra forma, o convidado disser "me pegue em uma hora, estou no último capítulo de um livro ótimo". Como assim o sujeito vai perder uma hora da balada para continuar a ler? É um tonto, um nerd mesmo!

O professor e jornalista Eugênio Bucci afirma, no debate "Jornalismo Sitiado" (disponível em DVD), que "somos a primeira civilização autorizada a acreditar naquilo que nossos olhos vêem, como se a imagem fosse a exata reprodução da realidade, e não uma representação dela". As razões dessa mudança? Somos uma sociedade marcada pela velocidade e aceleração, pelo tudo ao mesmo tempo aqui e agora, pela exigência sistemática de não desperdiçar um segundo sequer, pela pressa levada às últimas consequências, pela máxima que diz que "tempo é dinheiro", pelos simulacros e representações. E, com as imagens, as narrativas já nos chegam praticamente prontas, mais acabadas, previamente estabelecidas. É o prato feito, o lanche rápido. Basta pedir pelo número. Não é preciso pensar muito. São mais facilmente absorvidas e digeridas, incorporando-se rapidamente a nossas visões de mundo - e ajudando a modificá-las e construí-las. De que forma? É outra história. 


Instrumentalização e minimalismo 
Já a leitura é um exercício de paciência, persistência, concentração, solidão, construção e reconstrução. Volto, retomo, reorganizo, preciso lembrar o que li ontem, idealizo os personagens da maneira que bem entendo, faço anotações, vou pesquisar mapas e nomes citados naquelas páginas, costuro lenta e gradativamente os acontecimentos e seus significados. E as histórias nascem também a partir da minha recepção, das minhas singularidades. Não é fácil ler. O prato não vem pronto - ao contrário, precisa ser cuidadosamente escolhido e montado. É mais refinado. Em tempos de "menos é mais", no entanto, ouvimos exigências de textos mais "suscintos, mais curtos", e nos deparamos com a instrumentalização do ato de ler. Para que serve esse texto? Que vantagem imediata consigo com ele? Que benefícios materiais instantâneos posso obter? Professor, vai cair na prova? É mais importante ter do que ser. São perdidos de vista o desafio proporcionado pelo contínuo aprendizado, a saga do conhecimento, o encontro com a alma humana, a beleza do prazer curioso - e lentamente instigante e revelador.  

Não se trata, atenção, de demonizar uma e endeusar outra. Não tenho problema algum em admitir que, na sexta-feira, dia 11 de fevereiro, acompanhei por várias horas, sem tirar os olhos da telinha, o triunfo da revolução no Egito. Era preciso materializar aquele acontecimento histórico, por meio das imagens. Ao mesmo tempo, aguardei com ansiedade a chegada dos jornais impressos e revistas do final de semana, com reportagens de fôlego, artigos e análises mais aprofundas sobre o tema. Com as duas em cena, há equilíbrio. O que acontece é que, cada vez mais, a imagem é cultuada e reificada, quase a única referência de construção de visão de mundo, enquanto a palavra é esquecida e abandonada. No centro dos lares, a televisão transformou-se no Príncipe Eletrônico, como identificou o sociólogo Octavio Ianni.  

Essa é a questão - e uma diferença primordial: a imagem, ainda mais em eras de celebridades e de espetáculo arrebatador, provoca sensações. "Quem presta atenção à tela se dedica a ela, vive uma dependência crescente dela, vincula suas expectativas, sua economia emocional e intelectual a ela. Assim como o drogado aplica injeções de heroína, uma sociedade que depende da tela se expõe a bilhões de choques imagéticos. O choque singular é mínimo, quase imperceptível e não faz mal. Bilhões, no entanto, destroem justamente a atenção que elas atraem magneticamente", afirmou o filósofo alemão Christoph Türcke, em entrevistapublicada pela Folha de São Paulo em setembro do ano passado.  A leitura permite respirar, pede que coloquemos o pé no freio para desacelerar. E nos convoca ao exerício da razão e da reflexão - privilégios do Homo sapiens.

Falar e dizer
Enfim, será possível à leitura resgatar o trono que já ocupou? Difícil. Mas a batalha com esse objetivo é imperativa, pois, como destaca Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura de 2010, no texto "É possível pensar o mundo moderno sem o romance?" (no livro "A cultura do romance", organizado por Franco Moretti), "ler boa literatura é divertir-se, com certeza; mas, também, aprender, dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção, o que somos e como somos, em nossa integridade humana, com os nossos atos e os nossos sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações que nos ligam aos outros, em nossa presença pública e no segredo da nossa consciência, essa soma extremamente complexa de verdades contraditórias - como as chamava Isaiah Berlin - de que é feita a condição humana". O autor é cortante: "uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas coisas, porque para exprimir-se dispõe de um repertório reduzido e inadequado de vocábulos". 


Não tem jeito: para ler o mundo, é preciso ler bons livros.
JANEIRO 2011



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