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sábado, 8 de março de 2014

REPORTAGEM = CONTAR BEM UMA BOA HISTÓRIA

Da esquerda para a direita: José Eugênio de Oliveira Menezes, Nélson Araújo,
Mônica Martinez e Dimas Kunsch

(*) Elisa Marconi, radialista e professora universitária

Entrei meio esbaforida na sala dos professores da Faculdade Cásper Líbero para cumprimentar um colega. Quase não consegui fazê-lo, porque notei que, de frente para o bebedouro e de costas para mim, um convidado muito especial para o encontro que aconteceria em breve tomava café com outros professores da instituição. A palestra que ele daria numa sala próxima começaria em instantes.

Antes de entrar nos detalhes do evento chamado "A narrativa na TV: reportagem e histórias de vida", que contou também com a presença da jornalista Mônica Martinez, professora das Faculdades Fiam/Faam, mas que pretendia mesmo era dar voz ao repórter e editor do Globo Rural, Nélson Araújo, jornalista com mais de 40 anos de experiência e 30 deles à frente do programa matinal dos domingos da Globo, permitam-me explicar.

Não sou fazendeira, nem tenho parentes no campo, nem nada a ver com isso, mas cresci assistindo ao Globo Rural. A TV chegou à minha casa apenas alguns meses antes de o programa estrear, em 1980. E, naquele tempo, eu e minha irmã acordávamos cedo, cedíssimo, por vontade própria, inclusive nos finais de semana. (Hoje também, mas por conta dos filhos, que acordam prontos para dominar o mundo às 6h30 de qualquer dia!). Assim, via de regra, acabávamos assistindo ao programa de temática rural. 

Desde então, sempre que podia, ligava na Globo para ver o programa. Eu gostava. Àquela altura, ainda não sabia bem qual a razão do encanto. Mas hoje sou capaz de arriscar: as narrativas, sempre elas! Fui estudar comunicação, fazer mestrado em comunicação e dar aula de comunicação em boa medida por conta dessa magia que é contar e ouvir histórias. Aliás, o próprio Nélson, quase no final da palestra, explicou: “Acho que faz parte da natureza, do instinto humano, buscar a narrativa. Por isso a gente gosta tanto”. Era isso, exatamente isso. 

Vamos então voltar alguns passos para chegar até esse ponto. O encontro foi organizado pelo Programa de Mestrado em Comunicação da Cásper Líbero, coordenado pelo professor Dimas Kunsch, que foi quem abriu a mesa dizendo que as narrativas, em qualquer canto, e também no jornalismo, são “uma forma possível, não única, legítima, não menor, sólida, vigorosa, de origem ancestral e com futuro garantido de aproximar e conhecer o mundo”. Ele continua: “Num tempo em que se anuncia a morte de tanta coisa, posso afirmar que a contação de história não irá morrer nunca, porque ela nasceu junto com a humanidade e que bom que tem gente olhando para isso, porque as narrativas nos fazem ficar encantados com o mundo e isso nos dá mais vontade de viver”. 

Em seguida, passou a palavra para Mônica Martinez, pesquisadora do chamado jornalismo literário, com livros e diversos artigos publicados a respeito do tema. Entre eles, este aqui, http://compos.org.br/, que possui um texto (escrito em co-autoria com o prof. José Eugênio de Oliveira Menezes) justamente sobre o trabalho de Nélson Araújo no Globo Repórter e a busca de um outro tempo narrativo, coisa nada comum na televisão brasileira.

Mas a expectativa era grande mesmo para ouvir Nélson. Antes disso, ainda, breve pausa para a plateia assistir aos dois primeiros blocos do Globo Rural #1500, uma edição comemorativa que apresentou uma única grande reportagem sobre o buriti – a palmeira das veredas dos sertões do Brasil – ao longo dos quatro blocos do programa. Quando a apresentação da reportagem é interrompida para que o palestrante comece sua fala, a plateia reclama, quer assistir mais. De fato, a história que o repórter nos conta é absolutamente sedutora, cheia de casos, referências, informações sobre a árvore, as veredas, o sertão... a maneira como o repórter vai encadeando as sequências impede o público de piscar. Aqui, um trechinho da reportagem: (http://glo.bo/npU1C1). 

lson finalmente toma lugar na mesa, agradece e responde a uma pergunta que Dimas fez enquanto a matéria era exibida. “Nunca me perguntaram se eu gosto de me ver na TV. O que gosto mais é da minha voz”, e se antecipa em pedir desculpas, porque justamente naquele dia, a voz estava falhando, em virtude de uma alergia/rinite/faringite e assemelhados. Simpático e carinhoso com a plateia, o jornalista começa esclarecendo alguns pontos. Primeiro, diz que nada do que faz tem como intuito ser estudado, comentado, objeto de pesquisa. “É uma decorrência, que me deixa agradecido”. Depois que, embora pareça que é ele sozinho tocando a reportagem, “TV não se faz sozinho. Tem uma equipe grande comigo, em campo e na redação, para viabilizar o trabalho. O repórter aparece na frente da câmera, mas por trás dela tem um grupo grande”. 

Isso posto, vem o primeiro susto. “Contabilizo que para cada minuto que vai ao ar, trabalhamos cerca de 10 horas. Sem contar o trabalho de campo mesmo, depois das gravações trabalhamos 10 horas para cada minuto. Por isso, o segredo é um só: trabalho. Muito trabalho”. De fato, o método de trabalho – com anos de provação – da equipe do repórter/editor começa com a pauta; passa por uma preparação bem rica, “o jornalista tem que colocar a cara dele também, não se chega despreparado para uma gravação, tenho a experiência de 40 anos, mas tenho o trabalho dos dias anteriores, em que estudei tudo sobre as veredas, sobre Guimaraes Rosa, sobre o sertão do país”; e ao chegar na gravação, “vou como um bebê, com pureza e ingenuidade entre aspas, pronto para me encantar e me surpreender com tudo aquilo".

lson assume que em geral sai da redação com ideias pré-concebidas, que são descartadas no primeiro minuto da gravação, porque nessa hora acontece o mais importante: “eu vou para saber, para perguntar, levo a minha curiosidade até o limite para saber onde chega. Um jornalista tem licença para perguntar, que é fruto da curiosidade dele e de todo mundo, é inerente”. Nélson, como a profa. Mônica Martinez, defende que o gosto pelas narrativas faz parte da natureza humana e que cabe a ele, como mediador do público com a história, contar de uma forma compreensível, interessante e sedutora.

Como se chega a isso? “Com trabalho, trabalho e mais trabalho. Eu faço e refaço, reescrevo até achar que está bem contada a história. Minha busca é por encontrar o melhor caminho para narrar, fugindo do óbvio, buscando o interessante”. Tomo a liberdade de interromper o relato para contar que entre os roteiristas de produtos não-ficcionais essa é a maior busca também, é a oportunidade de se imprimir uma marca pessoal ao trabalho. Gostamos de chamar de linha narrativa, é o caminho que se escolhe para contar a história. Desse trabalho de decupar imagens, falas e prever possibilidades de sequências se origina uma apostila, com mais de cem páginas, que é o esqueleto da reportagem. Imaginem só, leitores. Para cada matéria, um livro de 100, 150 páginas. E cada livro é reescrito mil vezes, até que fique com a cara que o repórter procura.

Digo cara porque Nélson Araújo dá um outro susto na plateia: “Eu não escrevo com palavras, a palavra é um suporte para trazer as imagens”. Numa pergunta feita ao final da apresentação, Nélson explica que quem folhear as páginas da apostila verá palavras, claro: os textos dos offs, as falas dos entrevistados transcritas e tal; mas elas são, na verdade, cavalos que transportam um pensamento imagético, fundamental para produzir produtos audiovisuais. E como a inspiração e o caminho não caem do céu por providência divina, o editor do Globo Rural atribui a criatividade ao repertório. “Entendo que esse repertório é como dar um pouco de mim, é a maneira de me colocar na história. Por que eu tenho de saber por que, afinal, eu estou contando aquela história. Há muitas coisas por trás de uma história: consciência ecológica, respeito ao parceiro, seja um funcionário, seja um cavalo”.

Nesse ponto, ele vira contador de causo e lembra da história de um adestrador francês que treina os cavalos sem constranger, sem pressionar, sem machucar o animal. “O cavalo é presa, é uma máquina de correr, tem uma força descomunal, mas vive com medo, tem o ímpeto de fugir, porque na natureza ele é presa. E ele não gosta de ser pressionado. O negócio é que ele aprende não quando é pressionado, constrangido, mas quando afrouxam a tensão. E nós também – foi isso que eu quis passar na reportagem. A gente aprende é no alívio e não na hora da porrada. Por isso, alguém que trata o cavalo não como máquina, mas como parceiro, dá uma história bonita, interessante, que precisa ser contada”, narra o tele-trovador artesão.

Para saber essas coisas, Nélson lê, adquire conhecimento e faz associações, narra essas relações entre as coisas. E explica o contexto. “O público precisa ter os conceitos e as explicações prévias para entender o que vou contar. A matéria tem de ter uma espécie de glossário, de vocabulário, de imaginário, para o público fazer as relações também. De resto, vou como um sitiante, que vai visitar um amigo, que também é proprietário rural. Eu fico curioso para ver a cerca nova da propriedade, ou para ver a nova engenhoca que ele inventou para arrancar as mandiocas maiores, ou para adubar o cafezal de maneira ecológica, é esse o interesse, é dessa natureza. Chego aberto para receber e, ao ter recebido, compartilho o que sei, o que vi, o que descobri nessa visita”. 

OUTUBRO 2011

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