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domingo, 16 de março de 2014

O CABEÇÃO DE SANTO ANTÔNIO


Que atire a primeira pedra aquele que nunca esticou os olhos e fez malabarismos com o pescoço para tentar descobrir o que o passageiro do banco ao lado estava lendo, no metrô ou no ônibus lotados. Quem dera fôssemos os homens capazes de conquistar poderes sobrenaturais semelhantes aos de Mel Gibson no filme "Do que as mulheres gostam", para descobrir o que se passa nas cabeças das nossas caras metades, amigas, desconhecidas ilustres. A recíproca é verdadeira - as mulheres também adorariam ter acesso privilegiado e antecipado às mensagens e informações que se formam nos cérebros masculinos. Humanos são seres curiosos. A vontade de saber é marca da espécie; não raro, com todos os riscos envolvidos, esse desejo é tão intenso que ultrapassamos os limites da curiosidade e resvalamos (ou mergulhamos) na bisbilhotice, recolhendo e nos deliciando com segredos de alcovas, de confessionários, de banheiros femininos e masculinos, de salas secretas de reuniões, de depoimentos sigilosos. Ter informações privilegiadas, além de massagear o ego (eu tenho, você não), permite invariavelmente tirar vantagem de tal exclusividade.  

Protagonista de A cabeça do santo, primeiro romance dirigido ao público adulto escrito por Socorro Acioli, Samuel tem um dom capaz de causar pontinha de inveja em todos esses incorrigíveis curiosos e bisbilhoteiros. Ao visitar a cidade de Candeia, no sertão do Ceará, ele só encontra abrigo e moradia numa imensa cabeça oca de uma imagem de Santo Antônio, que está no chão justamente por ser muito pesada. Não havia guindaste que conseguisse transportá-la para o topo da estátua, que por sua vez reinava descabeçada no alto de um morro próximo. Dentro do cabeção, em horários fixos, o rapaz era capaz de ouvir todas as orações e os pedidos encaminhados pelas mulheres da cidade ao santo casamenteiro. "Eram exatamente cinco horas da manhã quando Samuel começou a acordar, atormentado, confuso. Ouvia vozes de mulheres, várias, falando ao mesmo tempo. Talvez fosse pesadelo, pareciam as mulheres do Horto. Sentou-se assustado, acordado, mas as vozes não paravam. Mais alto, mais forte, e, sim, era reza". 

Com a ajuda do adolescente Francisco (a relação nasce inicialmente de uma chantagem feita por Samuel, mas torna-se rapidamente sincera), o protagonista não demora a perceber que aquele dom especial garantia a ele a chance de alcançar fama e dinheiro. Ele faz uso dos segredos femininos a que tem acesso para aproximar e formar casais. Funciona. Visto como milagreiro, aquele que conversa e entende o que diz o santo, ele começa a ser reverenciado. Dá entrevistas. Vira celebridade midiática. A artimanha assume ares de negócio lucrativo. Samuel agenda consultas, vende conselhos, alavanca vendas de imagens do santo. Traz de volta vida pulsante a uma cidade em franca decadência, esquecida no mapa, quase fantasma. 

A primeira metade do livro é divertida, leitura mais leve, sem muitas tensões, a construir o cenário, apresentar os personagens e o universo mágico daquele sujeito que consegue falar com o santo, embora já ofereça também pistas sobre os conflitos que virão. Porque Samuel cutuca interesses de gente graúda na cidade. "Candeia renasceu. Voltou à vida pelas mãos das mulheres com sua fé, fazendo novena ao redor da cabeça do santo, acendendo velas, rezando dia e noite e esperando uma oportunidade de falar com o mensageiro. (...) Vestiu o capuz preso na parte de trás da roupa. Tirou a corda da cintura, enrolou na mão direita e invadiu a cabeça de Santo Antônio afastando a cortina improvisada. Pulou nas costas de Samuel como um sapo, ou um bicho cheio de tentáculos. Enrolou rapidamente a corda no pescoço de Samuel e foi feliz nesse golpe, porque o seu ponto fraco era exatamente o sufocamento, o desespero de não conseguir respirar". 

Samuel chegou a Candeia para cumprir promessa feita à mãe, que no leito de morte dela havia pedido ao filho que fosse à cidade para procurar o pai e a avó, que ele não conhecia. Fez Samuel também jurar ainda que iria acender velas para o padre Cícero, Santo Antônio e São Francisco. Para saldar sua dívida moral, ele vaga pelas estradas quase como mendigo durante quinze dias, enfrentando fome e calor insuportáveis; em Candeia, depois dos primeiros dias de fama e alegria, vai precisar lidar, na segunda metade da história, com mistérios que envolvem traições conjugais, ira de mulher traída, assassinato, cachorros ensandecidos, criança abandonada e negociatas conduzidas por políticos locais. No fim, será preso e, para não ser morto, abandonará a cidade. 

A cabeça do santo bebe com vigor na fonte do realismo mágico - a ideia do romance, aliás, nasceu depois de uma oficina que Socorro fez com Gabriel García Márquez, na Escuela Internacional de Cine y TV de Santo Antonio (de novo!) de Los Baños, em Cuba. "Apresentei o projeto da Cabeça do santo logo na primeira aula, em espanhol, e acho que nunca vivi nenhum dia depois disso sem lembrar dos comentários elogiosos do mestre. Ele não disfarçava a alegria de imaginar o protagonista descobrindo os segredos de amor das mulheres. Pediu que eu provasse ser verdadeira a existência de uma cabeça gigante no sertão do Ceará e eu mostrei a filmagem da minha visita à bizarra cabeça do santo. Foi intenso e divertido discutir meu projeto com García Márquez, mas não tivemos tempo de aprofundar muito o enredo", conta a autora, em texto publicado pelo Blog da Companhia das Letras. 

O romance coloca ainda o leitor em contato com a forte devoção religiosa, às vezes fanatismo, e com o coronelismo revisto e atualizado, à luz dos tempos atuais. São marcas não exclusivas da região, mas ainda muito presentes no cotidiano dos nordestinos. Os capítulos são curtos - e, se há uma ressalva a fazer sobre o livro, está justamente nessa narrativa rápida, expressa, sem muito tempo ou disposição para aprofundar algumas passagens da narrativa. É quase como um avião que voa baixo e oferece visão panorâmica das tramas, sem pousar com mais sossego nos aeroportos que se anunciam durante a trajetória. Exemplo - são muitas as vozes e os pedidos ouvidos diariamente por Samuel, mas apenas uma das preces atendidas e que termina em casamento por obra e graça da intervenção do protagonista merece destaque (a união de Madeinusa com o doutor Adriano). Senti falta de outras vozes, outros desenlaces, outras peripécias e armações. É, na minha percepção, o calcanhar de Aquiles da história.

Para Pedro Fernandes, professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), "A cabeça do santo faz fronteira com a literatura popular – o cordel, o causo, a fábula, as histórias orais – e a literatura erudita – o romance maravilhoso e o fantástico aperfeiçoado pela literatura latina de nomes como o próprio Gabriel García Márquez, o romance picaresco da literatura espanhola, o romance de 1930 da literatura brasileira e antecessores como o escritor José de Alencar. (...) Tudo, harmoniosamente bem aproveitado na construção estrutural da narrativa que se reveste do tom de seu tempo: a objetividade, a não linearidade do narrado, a fragmentação e o diálogo, ainda que tímido, com a linguagem poética". 

E só para aguçar um pouco mais a ancestral curiosidade que nos move - o mesmo cabeção do santo que é responsável por desgraçar a vida do pai de Samuel é também quem vai operar milagre e garantir a felicidade do protagonista. 

Um comentário:

  1. Ai, meu Deus, mais uma para a minha lista, que só aumenta!!! rsrs
    Adorei esse espaço literário, Chico!
    Parabéns e sucesso!
    Beijos, Vivian

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