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sábado, 8 de março de 2014

MONTEIRO LOBATO ERA RACISTA. E AGORA?

Passei boa parte da infância esparramado no chão do escritório da casa de meu avô, cotovelos fixos no tapete, rosto apoiado nas palmas das mãos, concentração máxima, silêncio absoluto, completamente encantado com os livros de Monteiro Lobato e transportado para o mundo mágico das onças e dos bodoques de Pedrinho, das águas claras e dos príncipes-peixes de Narizinho, da torneirinha de asneiras da perspicaz boneca Emília, das sábias descobertas do Visconde de Sabugosa, dos medos, sustos e sinais da cruz da tia Nastácia, das histórias na varanda contadas por dona Benta. Era tarefa mais do que difícil fechar aqueles livros para cuidar da vida real. Eu precisava sempre ser "resgatado".

Sim,  tive conhecimento, bem mais adiante, já não mais criança, dos possíveis contornos e sugestões de comportamentos e dizeres racistas presentes na obra infantil do escritor nascido em Taubaté, interior de São Paulo, e um dos ícones (talvez o principal deles) da literatura infantil brasileira. O debate acadêmico a respeito dos deslizes racistas lobatianos não é recente.

E o que poderia ser até agora considerada uma questão de interpretações e análises, e portanto certamente marcada por desejáveis e saudáveis subjetividades, alcança outro patamar, bem mais grave, complicado e sério, penso, com a pubicação pela revista Bravo! (edição de maio, nas bancas), em matéria de capa, de trechos de cartas até agora inéditas de Lobato ao também escritor Godofredo Rangel e aos cientistas Renato Kehl e Arthur Neiva. Os documentos foram encontrados nos arquivos da Fundação Oswaldo Cruz e da Fundação Getúlio Vargas, ambas no Rio de Janeiro. 

O conteúdo das cartas é devastador, são verdadeiras "arrasa quarteirão". Primeira pista: as correspondências, como revela a reportagem com muita propriedade, estabeleciam conexões entre três confessos defensores da eugenia (a suposta e pretensa superioridade da raça branca, tese que procurou apresentar-se com lastro de conhecimento científico no final do século XIX e início do XX). 

O Monteiro Lobato que surge das cartas não é apenas "um homem de seu tempo, alguém que vivia impregnado por uma atmosfera cultural permeada ou contaminada por esses conceitos". É um sujeito assumidamente racista e preconceituoso, com convicção e consciência de tais ideais de intolerância, e disposto a defendê-los. Não há mais como tapar o sol com a peneira ou tentar dourar a pílula. É preciso reforçar, com clareza e precisão: estamos falando de alguém com visão de mundo e discurso racistas, que considerava os negros como sujeitos inferiores e de segunda categoria.

A reportagem faz referência a trechos de várias cartas. Há dois momentos em especial que são mais do que representativos (infelizmente) desse comportamento preconceituoso. Na primeira, enviada a Neiva, em 1928, Lobato escreve que "país de mestiços, onde branco não tem força para organizar Kux-Klan, é país perdido para altos destinos (...) Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva". Na segunda, também encaminhada a Neiva, em 1935, e comentando a mestiçagem e a negritude na Bahia, o escritor paulista escreve: "mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha! A massa popular é positivamente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco biológico tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas".

Eu me senti exatamente como você, leitor, está se sentindo agora. Estarrecido, de certa forma inconformado, acuado. Mais do que tudo: agoniado. Mais uma vez: estamos objetivamente falando de um homem racista.

Mas a situação é bem mais complexa, porque estamos simultaneamente falando de um autor que soube como poucos captar, entender, respeitar e tocar a alma infantil, que compreendeu o que é ser criança em toda sua plenitude e que se dedicou a contar com maestria as coisas do mundo para os pequenos.

Vamos a partir de agora impedir que as crianças travem contato com esse universo riquíssimo de personagens e de peripécias, de estímulos e convites geniais à imaginação? Vamos demonizar e queimar em praça pública a obra de Lobato? Vamos transformar as caçadas de Pedrinho e os casamentos de Narizinho em agentes de males e de perversões? 

Sinceramente, desejo ardentemente que meus filhos continuem se alimentando das histórias contadas por Monteiro Lobato - que, aliás, eles já adoram. Estivemos no ano passado no Sítio do Picapau Amarelo, em Taubaté, a fazenda-museu que preserva as origens do escritor, e pude ver os olhinhos dos dois brilhando ao encontrarem e abraçarem a Emília, Pedrinho, Narizinho e tia Nastácia. Ainda hoje, por coincidência, a pequena (nem tanto, mas para sempre) Luiza comentou, durante o almoço: "pai, deixei o livro do Monteiro Lobato na escola, para ler nos intervalos. Não consigo parar. É sensacional". Não posso privá-los desse privilégio encantador, definitivamente.

A própria reportagem da Bravo!, muito sensata e equilibrada, reconhece que o escritor "é um dos mais talentosos de sua geração. Legou ao Brasil um bem inestimável: uma literatura infantil de altíssimo nível, que pode ser lida até hoje. As eventuais alusões racistas a personagens como Tia Nastácia não tiram o prazer da leitura - talvez constituam até um bom tema de discussão em aula". Penso que esse é mesmo o novo caminho a seguir, como também recomenda Ana Célia da Silva, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em entrevista publicada pelo portal Terra: "O que se deve fazer não é retirar a obra, que é preciosa, mas desconstruir o racismo contido nela". 

Tal tarefa de desconstrução do preconceito, de conscientização e desenvolvimento de postura crítica (e ao mesmo tempo lúdica), a ser desempenhada primordialmente por pais e professores, pode inclusive transformar a leitura de Monteiro Lobato em uma experiência ainda mais sofisticada e prazerosa.

Condenar com veemência e contundência, sem melindres, o Monteiro Lobato racista, sem deixar de exaltar sua habilidade narrativa e literária, garantindo que, com os devidos alertas e orientações, as crianças possam continuar se deliciando com o brilhantismo sem igual das histórias e dos personagens criados pelo escritor paulista. Esse é o encaminhamento que sugiro.

O debate está aberto, apenas começando. E você, o que pensa sobre o assunto?

MAIO 2011

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