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quarta-feira, 12 de março de 2014

UM MENDIGO CULTO E A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA



Um mendigo intelectual (ou vice-versa, um intelectual mendigo) vaga pelas ruas violentas de uma metrópole. Não se conforma - foi abandonado, há dez anos, pela mulher amada, que deixou para ele apenas um bilhete lacônico que dizia "ACABOU-SE. ADEUS". Emocionalmente estraçalhado, ao mesmo tempo esperançoso, sonha permanentemente com a volta dela. Imagina poder reencontrá-la em cada esquina, em cada quebrada, em cada viaduto ou beco da cidade que (não mais) o assusta. Atordoado, tenta manter quem sabe o tantinho de chão de humanidade que ainda lhe resta recorrendo e citando, de cor, adágios de Erasmo de Rotterdam (1466-1536), teólogo holandês considerado um dos expoentes do humanismo iluminista. É a partir dessas referências constantes ao pensador europeu que o protagonista estabelece derradeiro ponto de conexão com o que ainda lhe sobra da ideia de civilização. É também o movimento que garante  a ele momentos de lucidez (ou de delírio?), a estratégia que parece ter encontrado para enfrentar o submundo em que vive, gritantemente marcado pela exclusão, criminalidade, alcoolismo, brigas, mortes e abusos sexuais. 

Erasmo funciona, assim, como elemento de reforço da condição humana do mendigo, memória daquilo que ele já foi, a remeter ainda aos tempos gloriosos de convivência e paixão com a amada imortal. E é esse personagem perturbado pela frustração de um amor perdido quem nos conduz pelas 127 páginas de "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam", escrito por Evandro Affonso Ferreira e vencedor do Prêmio Jabuti de 2013, categoria romance. O trecho da obra destacado a seguir (página 35) é representativo da narrativa e revela como o autor, com extrema habilidade literária, consegue dar saltos harmônicos e costurar tramas aparentemente tão distantes. Evandro, aliás, já contou que a ideia do livro surgiu quando, ao andar pelo Centro de São Paulo, contou 95 mendigos, num espaço de quinze quadras. Ficou estarrecido.

"Ficarei todas as noites esperando-a na calçada do outro lado. Poderá ser amanhã; ou depois de amanhã; ou no último dia da mostra desse magistral diretor japonês. Vou encontrá-la. Poderá ser mês que vem - no momento em que ela estiver saindo de hospital qualquer. Poderá ser ano que vem - quando eu estiver mais uma vez, diante de uma vitrine, vendo por intermédio televisivo outra tragédia gigantesca. Colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o culto do homem em todas as formas. Estou falando dele, Erasmo de Rotterdam. Dizem que tinha a convicção que seria possível pôr termo aos conflitos que dividem os homens e os povos, sem violência, por concessões mútuas. Veja: um dos três maltrapilhos alcoólatras caiu de bruços. A-hã: testa toda ensanguentada. Miseráveis".   

Sem proselitismos palanqueiros e escapando dos discursos panfletários - não precisa desses recursos -, investindo firme na descrição minuciosa desse mundo-cão em que está mergulhado, o protagonista nos tira de nossa zona de conforto e é mais um a lembrar que estamos perigosamente banalizando a violência e naturalizando as desigualdades. Aceitamos viver em uma megalópole doente, como se essa relação fosse normal, tranquila, "é o que temos para hoje". Somos capazes de andar pela Praça da Sé e olhar para as crianças ali abandonadas e perdidas sem manifestar nesga de indignação. Fazem parte do cenário urbano, a ele já foram incorporadas. Trafegamos aceleradamente pela cidade transformada em gigantesca autopista, sempre com os vidros escuros fechados, travados. Blindados. Não queremos ser abordados. Temos medo da nossa infância. Asco? Ojeriza? São cada vez mais comuns e corriqueiros os apelos por ações de limpeza social, a defender abertamente que essa escória que invadiu as ruas seja retirada do espaço público, custe o que custar, à força, se preciso for, para que a cidade possa de novo pertencer aos "cidadãos de bem". O horror. 

"É difícil a tarefa de viver - principalmente na rua. Amontoados uns sobre os outros nas praças empregamos com maus resultados qualquer traçado paisagístico. Somos o cancro da estética. Uma vez ouvi senhora idosa dizendo para outra: essa gente enfeia demais a cidade. Esqueceu-se de dizer que a tornamos mais fedentinosa também". Evandro joga esse submundo fedorento e indesejável no nosso colo e, sem fazer barulho, grita: "esses sacos de merda também pertencem a você, meu caro leitor. Estamos juntos. Ocupamos o mesmo espaço. Segregar não resolve. Ao contrário". Na loucura e em seus lúcidos delírios, lampejos de racionalidade, o mendigo intelectual nos faz olhar para um espelho que reflete a máxima estupidez humana.

A leitura não é fácil, exige paciência, persistência, não apenas porque cada parágrafo sugere um soco no estômago, e é preciso respirar antes de levantar e seguir em frente. A linguagem é marcada pela oralidade. E o monólogo com um interlocutor imaginário, com quem o protagonista supostamente "conversa", é também recheado de palavras herméticas, expressões difíceis, um vocabulário rebuscado, tenso, que nos faz avançar lentamente pelas páginas. Ao mesmo tempo, porque intensa, visceral, a história nos empurra a seguir até o final. 

É uma briga literária que vale muito a pena. Porque, afinal, "somos todos igualmente miseráveis". 

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